São Paulo, quinta-feira, 02 de janeiro de 2003
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outras idéias - mario sergio cortella

Comemorar significa "memorar junto", lembrar com outros. Nós gostamos demais de festejar, porque essa é a possibilidade de nos alegrarmos

O fim nunca está próximo

Dez, nove, oito, sete... E aí foi mais uma contagem regressiva, que nos remeteu aos recomeços e ao nosso persistente fascínio pela gestação daquilo que poderia ou poderá ser diferente.
Adoramos a idéia de ciclos, períodos ou épocas que se encerram; essas ocasiões nos permitem imaginar que uma etapa pode ser terminada e, supostamente, nos oferecer a chance de começar de novo, de um outro jeito, de novas formas, com inéditos vigores e renovadas intenções. Nossa obsessão pelos insistentes fins e recomeços fica ainda mais aguda quando nos remetemos aos anos, por serem estes os tijolos que compõem décadas, séculos e milênios, descortinando uma atração pelo mistério matemático que nos envolve na aura do misticismo impregnador dos sonhos dos reinícios.
Todo esse misticismo em torno dos aparentes términos está profundamente entranhado nas sociedades que estruturaram um sistema decimal de numeração para a contagem do tempo, especialmente quando escolheram as datas terminadas em dez ou múltiplas de dez como sendo as mais marcantes. Por que isso? Porque o dez e seus múltiplos dão a idéia de "ciclo terminal completo". São esses os algarismos que aprendemos primeiro, para depois compor os outros. Em algumas brincadeiras infantis (como o pega-pega ou esconde-esconde), conta-se até dez antes de sair correndo; dividimos o tempo em décadas e, ao juntar dez delas, formamos um século, que, multiplicado por dez, compõe um milênio.
Falamos em planos decenais, na prestação de contas necessária nos primeiros cem dias de um governo, atribuímos nota dez ao que parece ótimo e, como sempre, fazemos a contagem regressiva a partir do dez até para marcar o ápice do Réveillon. Também o 10x10x10 era, desde o passado, um número do exagero, para mostrar como algo era grande demais; assim, por exemplo, ainda hoje dizemos: "Já te falei mil vezes para não fazer isso!", "Você já prometeu mil vezes que iria mudar de vida". Queremos vencer os finais e reinventá-los de maneira incessante. Por isso temos muita dificuldade em aceitar o aprisionamento temporal quase fatalista proposto pelo alemão Schiller, autor da "Ode à Alegria", utilizado por Beethoven no último movimento da insuperável 9ª Sinfonia, que há 200 anos afirmou: "Três aspectos tem a marcha do tempo: o futuro aproxima-se hesitante, o agora voa como seta arremessada, o passado fica eternamente imóvel". Nesta hora, o prenúncio antropocêntrico sugerido por Shakespeare nos domina e assumimos um pouco a tarefa de Hamlet, pronunciada no Ato 1, que usa a idéia de tempo de forma propositadamente ambígua: "Como andam os tempos fora dos eixos! Ó, maldita vexação, ter eu nascido para dar-lhes correção!".
Quem realmente ganha com essa repercussão e com essa celebração das datas? Todos podemos ganhar, se elas forem vividas com responsabilidade saudável e afetividade sincera. Há aqueles que procurarão obter vantagens inescrupulosas com os temores religiosos, explorando a fragilidade de nossas angústias e fragilidades. Contra esses "vampiros de almas", só funciona o aparato judicial e a religiosidade esclarecida e não-alienante.
O lado mais positivo disso tudo é a comemoração e o revigorar da esperança; comemorar significa "memorar junto", lembrar com outros. Nós, humanas e humanos, gostamos demais de festejar, porque essa é a possibilidade de nos alegrarmos e de nos encontrarmos de maneira livre e lúdica e, portanto, qualquer motivo é um bom motivo, mesmo quando não é uma data tão "redonda".
O que sempre lembramos? Estarmos vivos e juntos, mesmo que algo pareça estar terminando e nunca haver a certeza absoluta de que seja invencível o renascer. Não importa; fazemos com que assim seja e queremos que não deixe de ser assim.


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP, autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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