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Outras idéias
Caprichos
Anna Veronica Mautner
Há pouco tempo, por
pressa e um tantinho de descaso com
a minha aparência,
saí de casa com três cachinhos
no topo da cabeça. Ainda bem
que não ostentava bóbis, eram
só grampos. Uma amiga me esperava, e lá fomos nós para um
almoço de aniversário. Depois
de uma hora, tendo já sorrido e
conversado, por um acaso do
destino pus a mão na cabeça e...
socorro!! Arranquei ali mesmo
os grampos que prendiam os
cachos. Corei! Perguntei a
quem estava ao meu lado por
que não me avisara: "Porque
achei que fosse novidade!".
Mesmo que fosse, caberia um
reparo ainda que respeitoso.
Hoje é assim: qualquer comentário é visto como desaprovação pela etiqueta -criticar,
desaprovar e apontar diferenças viraram tabu. Parece que
somos tão frágeis que não suportamos a percepção de nossos deslizes. É por isso que cada
vez mais se confunde complacência com bons modos.
Outro dia, vi saltar de uma
calça jeans feminina, de cavalo
bem curto, um traseiro completo. Ao natural, a calça já
mostrava boa parte; agachando-se para endireitar o tênis, o
indesejado aconteceu. O homem que a acompanhava se
constrangeu, assim como outros que estavam em volta.
Olhei para ver se ele faria algum
comentário. Não fez.
Observação, crítica ou admoestação não deixam de ser
feitos apenas nos deslizes do
cotidiano -também abundam
na vida profissional e na pública. Sem "feedback", é difícil
aprender, corrigir e mesmo
criar. Fosse isso regra só do
mundo dos adultos, já seria grave. Presente em todas as etapas
da educação das crianças, traz
funestas conseqüências. Claro
que não as deixamos fazer tudo,
mas elas são impedidas com
maior veemência quando atrapalham os adultos.
Evitamos que as crianças estraguem nossos livros, mas o
caderno delas pode ter as pontas dobradas, folhas amassadas
e capas maltratadas. Sei que
ainda existe o ritual de encapar
livros e cadernos novos no começo do ano. Assim se garante
ao adulto o direito de cobrar asseio e ordem.
Vivemos num mundo em que
cada vez mais temos máquinas
a nos substituir. Elas são exigentes e caprichosas; o cuidado
é vital para que funcionem. As
tomadas elétricas têm exigências milimétricas para manter
o contato que as liga às máquinas, que, por sua vez, também
exigem controles exatos.
Ainda bem que existem os
"games" de internet, em que
valem precisão e pontaria, senão criança nenhuma desenvolveria motricidade fina, justamente o que é cada vez mais
exigido pela tecnologia. Digitar
pede maior precisão do que a
velha datilografia -qualquer
toque no teclado produz efeito.
O caderno relaxado não impede por si a aprendizagem,
mas diminui a probabilidade
de seu conteúdo ser levado a
sério e assimilado. A repetição
diária de erros e o desleixo generalizado que ocorre sob
olhares complacentes não só
banalizam o ato e o fato mas
também desdenham a capacidade de o outro se aprimorar.
Apontar enganos é mostrar
cuidado e respeito. É dizer que
estava prestando atenção à
pessoa que se enganou.
Recebi chocada a complacência dos olhares que me deixaram no ridículo na festa. Teria preferido pito ou gozação.
Durante meses, centenas de
olhares complacentes deixaram passar vários enganos em
todas as etapas do simples ato
de aterrizar um avião em Congonhas. O culpado? Em parte,
o vício do olhar complacente.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed.
Ágora)
amautner@uol.com.br
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