São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2011
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NEURO

SUZANA HERCULANO-HOUZEL suzanahh@gmail.com

Presa e predador


Por que entrei no terreno da fera? Porque até ali tudo foi bem -e é assim que se faz besteira


Durou uma fração de segundo, mas o sentimento foi inequívoco, com o proverbial calafrio se espalhando pela espinha, e deixava o aviso da amígdala muito claro para todo o cérebro.
Caso eu ainda não tivesse notado, havia uma chance significativamente maior que zero de eu virar almoço daquele guepardo solto a uns 15 metros de mim. E que já estava me encarando, com zero obstáculo entre ele e sua presa em potencial: eu.
Eu até havia notado, sim, antes mesmo de pisar no terreno do guepardo; eu me lembro que as palavras "ideia de jerico" e "é sério que a gente vai fazer isso?" cruzaram meu córtex quando a veterinária abriu a grade para nós passarmos.
"Realmente, ideia de jerico" me veio de novo à mente ao registrar uma carcaça recém-comida na grama, mais adiante. Mas nenhum pensamento racional se compara ao que aconteceu quando levantei os olhos e eles deram nos olhos do guepardo me olhando de volta.
A direção do olhar é o sinal mais inequívoco de que você está no radar de alguém, e a amígdala dá o alarme.
Por que eu entrei no terreno do guepardo? Porque até ali tudo tinha ido bem -e é assim que se faz besteira.
No começo, ao registrar o imponente portão eletrificado na entrada do santuário de animais selvagens, na África do Sul, o cingulado anterior, mestre em antecipar conflitos, nota que aquilo é um pouco parecido demais com as cercas do "Jurassic Park". E faz o "locus ceruleus" acionar o alarme que deixa o resto do cérebro em alerta, atento, pronto para registrar bichos se mexendo.
Aí você entra de carro na propriedade e não vê nada muito perigoso além de um rinoceronte pastando atrás de umas grades. Conversa meia hora com o veterinário-chefe, e nada notável acontece. Passeia a pé pela propriedade seguindo a veterinária simpática, registra mais uma vez os portões eletrificados, passa por eles. E nada acontece.
Seu cingulado anterior relaxa; o córtex pré-frontal começa a se ocupar da conversa com a veterinária, que agora brinca tranquilamente com dois leões adolescentes atrás das grades sólidas da quarentena. Você se sente seguro. E então, quando ela diz "pode entrar, vamos ver o guepardo", você... entra primeiro e questiona depois.
Mas ela foi na frente, chamou o guepardo -e ele veio, manso, ronronando alto como um enorme gatinho. Meu pré-frontal mandou a amígdala sossegar. Agora tinha uma tarefa mais importante: fazer festinha no guepardo...

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com



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