UOL


São Paulo, quinta-feira, 03 de abril de 2003
Texto Anterior | Índice

outras idéias - mario sergio cortella

Os que chegam com a Noite...

Os fratricidas de qualquer espécie não triunfarão perpetuamente, e o ônus da morte perturbará o sono dos que não merecem "dormir em paz"

Odor persistente de guerra nos ares; a putrefação moral anuncia sua inclemente e repugnante consequência, e a náusea das consciências e dos corpos ainda se espalha pelas narinas tão fatigadas. O humano, mais uma vez, afronta o humano, demonstra repulsa pelo outro, estilhaça a confiança no convívio fraterno, tripudia sobre a idéia de humanidade e, pior ainda, profana a vida, degenerando a esperança e, em nome da paz, aceita a sempre desprezível consagração das atrocidades.
A paz dos cemitérios! Por ironia, do ponto de vista etimológico, cemitério deriva do grego "koimeterion", isto é, lugar onde se deita para dormir, pois, com a noite vem, além do sono, também o pesadelo e, para muitos, a morte.
Ora, acredita-se que o poeta Hesíodo tenha escrito, no século 7º a.C., a "Teogonia", um estudo sobre a genealogia dos deuses. Nessa imprescindível obra, ele registra a origem de Nix (a Noite), filha de Caos, que, tal como contemporâneas e sofisticadas ferramentas homicidas, o tempo todo atravessa o céu, sob um lúgubre manto e usando um veículo veloz, acompanhada das Queres, suas filhas (cujo nome significa destruir, devastar, arruinar). No entanto Nix não gerou somente as Queres; dela vieram por partenogênese (reprodução sem fecundação externa, virginalmente) duas outras importantes personificações divinizadas: Hipnos (o Sono) e seu irmão gêmeo Tânatos (a Morte), duas faces da mesma realidade.
Hipnos, bondoso na sua capacidade de nos fazer repousar, é perigoso quando distrai, desvia a atenção e, especialmente, quando dissipa a consciência e facilita a inadvertência. Não são poucas as pessoas que fingem dormitar ou aguardam, cochilantes, na expectativa de que tudo passe logo e que se possa voltar à mediocridade egocêntrica. Tânatos -nome de raiz indo-européia que significa "ocultar", "escurecer" ou "atirar na sombra"- pode remeter de igual forma à idéia de descanso, de quietude ou de remanso; porém a força tanática prioritária é a dissipação, a extinção, a cessação.
Cautela com os que chegam com a Noite. Há um poema de Cecília Meireles -cuja última estrofe serviu como título de um livro com nove admiráveis e angustiantes contos de Lygia Fagundes Telles- que talvez represente hoje um pouco da penumbra que nos invade: "Ninguém abra a sua porta / pra ver o que aconteceu: / saímos de braço dado / a noite escura e mais eu".
Não tem importância. Os fratricidas de qualquer espécie não triunfarão perpetuamente, e o ônus da morte perturbará o sono dos que não merecem "dormir em paz". Não é por acaso o título da marcante música "Pesadelo", de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro, cujo trecho inspira: "Quando um muro separa, uma ponte une / Se a vingança encara, o remorso pune / Você vem, me agarra, alguém vem, me solta / Você vai na marra, ela um dia volta / E, se a força é tua, ela um dia é nossa / Olha o muro, olha a ponte / Olha o dia de ontem chegando / Que medo você tem de nós...olha aí... / Você corta um verso, eu escrevo outro / Você me prende vivo, eu escapo morto / De repente...olha eu de novo".
Ainda bem que Nix (a Noite) deu origem também a Filotes (a Ternura) e a Oniro (o Sonho). Para os adversários dos exterminadores do futuro, no princípio era o verso... Renunciar ao apodrecimento das mentes e derrotar a negligência ética é sonho vital para afastar o colapso dos fundamentos da existência coletiva.
Arreda, fratricídio! Você corta um verso? Eu escrevo outro... Você me prende vivo? Eu escapo morto... De repente...olha eu de novo.


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento": Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


Texto Anterior: Opções de tratamento
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.