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COMPORTAMENTO
Nos momentos de folga, algumas pessoas fazem o que não gostam só para agradar aos amigos, enquanto outras nem percebem que se estressam durante o programa preferido
Lazer pode rimar com desprazer
ANA TEREZA CLEMENTE
LAVÍNIA FÁVERO
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
D de descanso, D de divertimento e D de desenvolvimento
de novas formas de aprendizagem. Esses três Ds, como ficaram conhecidos, são as funções do lazer propostas pelo
sociólogo francês Joffre Dumazedier (1915-2002), um dos
mais conceituados estudiosos da área e que exerceu forte
influência sobre pesquisadores do mundo todo. "Essas funções não são
estanques, mesclam-se muitas vezes", diz Christianne Luce Gomes,
coordenadora pedagógica do Celar (Centro de Estudos de Lazer e Recreação), da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Embora
se conquiste qualidade de vida por meio do lazer, poucas são as pessoas, segundo Christianne, que conseguem aproveitá-lo de forma equilibrada, autêntica e significativa. Por pressões do grupo, da mídia e da
moda, por ansiedade em querer ser feliz ou até por uma questão de status, há quem transforme os momentos de folga em desprazer. O D de
divertimento, então, é quase esquecido.
Sair para dançar, por exemplo, não é o programa preferido do estudante de administração José Antônio da Silva, 21, mas os amigos
insistem e o convencem a ir. E ele, que adora ficar em casa vendo filmes ou dar uma passada
em lugares mais calmos, como bares, incorporou as boates a seu estilo de vida, mais pacato.
"O povo quer balançar, não adianta. Sempre
ouço os mesmos comentários: "Você é jovem,
vai ficar em casa mofando?", e acabo entrando
na onda. Acho bom sair de vez em quando, alivia o estresse, mas não precisa ser a toda hora."
José não bebe e prefere ficar quieto ainda que
a balada inclua pista de dança. A solução para
acompanhar os amigos sem abrir mão do sossego é pagar um ingresso mais caro e ter acesso
à área VIP. "Até danço um pouco, mas gosto
de estar no meu canto. Detesto muvuca", afirma. O principal motivo que o leva a sair, mesmo quando não tem vontade, é encontrar os
amigos. "Se não for, fico semanas sem vê-los",
diz. "Hoje não tenho mais medo, mas já senti
muito receio de que as pessoas não me ligassem mais porque nem sempre aceito os convites", conta.
Resistir à cobrança de ir a determinado lugar
do qual não se gosta não implica quebrar os
códigos do grupo -ou não pertencer mais a
ele. Pode, ao contrário, mostrar atitude, demonstrar que se tem personalidade, embora
muitas vezes os jovens sejam bem suscetíveis à
influência dos amigos. Cria-se, então, um paradoxo: o prazer acaba sendo quase que uma
espécie de dever de casa. "É urgente que cada
indivíduo se conheça e saiba mais sobre seus
verdadeiros desejos", afirma a filósofa Marcia
Tiburi, professora de pós-graduação da Unisinos, no Rio Grande do Sul, e uma das quatro
integrantes do programa "Saia Justa", do GNT.
MARIA-VAI-COM-AS-OUTRAS
Segundo o pesquisador do CNPq Nelson
Carvalho Marcellino, autor de livros sobre lazer, a pessoa tipo maria-vai-com-as-outras
sente-se bem não porque está participando de
uma atividade com o grupo, mas por causa da
boa impressão que provoca nos outros. "Ela
quer agradar ao amigo ou ter assunto para
conversar com ele", diz. São os líderes do grupo que estabelecem os parâmetros do que é
bacana fazer. "A pessoa acaba se colocando em
uma posição passiva, tendo experiências de lazer que não são fruto de seus próprios desejos,
mas de imposições e determinismos sociais",
diz Christianne Luce Gomes. "Romper com
esse ciclo pressupõe compreender o papel do
lazer na sua vida."
A pediatra Graziella Rodrigues Souza, 31,
destoa das pessoas que ainda se encantam
com as ofertas de entretenimento embutidas
em um shopping center. Recorre a esse tipo de
lugar por uma questão de praticidade: vai ao
cinema e faz compras, já que em seus horários
disponíveis as lojas de rua estão fechadas.
Mas, quando os amigos combinam de ir ao
shopping para comer ou tomar algo no fim de
semana, Graziella se antecipa -por não querer se estressar- e tenta convencê-los do contrário. "O lugar é barulhento, a praça de alimentação está quase sempre lotada, você tem
de ficar dando voltas para achar uma vaga para estacionar o carro", afirma. "Shopping é
uma coisa impessoal, onde não se vê o lado de
fora, não se sabe se é dia ou noite."
De simples centros de mercadorias, os
shoppings se tornaram pontos de lazer. O número de freqüentadores não pára de crescer
-no ano passado, só em São Paulo, foram registrados 185 milhões, em média, de visitantes
por mês- e as diversões, idem. Das cerca de
1.800 salas de cinema do país, mais de 1.100 ficam em shoppings. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política da USP (Universidade de São Paulo), esses espaços se tornaram um emblema da
sociedade. "Roberto DaMatta [antropólogo],
20 anos atrás, contrastava "a casa" e "a rua". Hoje, a praça -onde as pessoas se encontravam,
faziam "footing", paravam, ficavam- e a rua
-por onde as pessoas circulavam- se esvaziaram. O shopping tem algo da praça porque
é um lugar onde se fica. Mas é um lugar de
consumo, não tem sol nem ar natural. Por isso,
ele é um emblema de como nossa sociedade
constrói seus ideais: pouca natureza, tudo artificial."
Artificial também pode ser a noção que as
pessoas têm de aproveitar o tempo livre, expressão bastante desgastada pelo mau uso.
"Ler, ficar em casa ou dormir algumas horas a
mais parecem atividades de pessoas solitárias,
pouco criativas, com dificuldade de relacionamentos "interessantes". É importante se mostrar ativa, extrovertida, sociável", diz a professora Fátima Cabral, da Faculdade de Filosofia
e Ciências da Unesp (Universidade Estadual
Paulista). Ela diz que, para a empresa em que
se trabalha e para os amigos, é importante investir na imagem de quem cuida do corpo e está sempre muito bem informado. "Ainda que
à custa de uma relativa frustração e de um estresse físico e mental." Fátima Cabral questiona se as novas tecnologias têm mesmo o papel
de facilitar e agilizar a vida -o que, em conseqüência, ajudaria a impulsionar o tempo vago.
"Mas, cada vez mais, as pessoas estão aprisionadas, tendo seu tempo submetido ao toque
do celular, à consulta do e-mail, à pesquisa da
última notícia na internet", diz. "Ninguém se
dedica mais a algo que não pode ser abreviado.
Ficar sozinho exige certa competência. Caso
contrário, logo se cai na depressão e no tédio.
Daí a "obrigação" do lazer."
HORROR AO VAZIO
A ânsia de sempre desempenhar uma atividade está intimamente ligada ao que os filósofos chamam de "horror vacui" (horror ao vazio). "Vivemos em uma sociedade ansiosa, em
que não há espaço para não se fazer nada, pois
o não-fazer, o vazio, nos obriga a criar, a pensar, a perguntar. E temos medo de perguntar e
muito medo do que pode ser respondido", diz
Marcia Tiburi. "É uma antiga e falsa sensação
de inferioridade o fato de não fazer nada",
completa Sérgio Stucchi, coordenador do Departamento de Estudos do Lazer da Faculdade
de Educação Física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Tiburi sempre
achou o ato de se divertir muito chato. "Desde
adolescente, eu dormia nas poucas festas a que
ia. Sempre preferi ficar em casa escrevendo,
desenhando ou conversando com amigos."
Mas passar o fim de semana em casa, sem
produzir algo de especial, é o que de pior poderia acontecer a alguém, segundo os modelos
predeterminados do chamado "lazer de bom
gosto". Afinal, a indústria do entretenimento
oferece milhares de opções, de jogos eletrônicos e parques temáticos a espetáculos, feiras,
clubes e restaurantes de todas as estrelas. É
possível, porém, não dar ouvidos a esses apelos e esquivar-se da influência da indústria cultural. "E exercer um lazer contemplativo e
chegar ao descanso físico, divertir o espírito,
desenvolver a mente", diz Sérgio Stucchi. "Difundiu-se a idéia de que interessante é fazer algo para se divertir e acabar com o tédio. E, como na sociedade prevalece a velha equação de que "tempo é dinheiro", o tempo, de tão precioso, não pode ser desperdiçado", afirma Christianne Luce Gomes.
Obrigar-se a estar sempre em ação pode ser ditado pelo próprio temperamento -para quem tem personalidade mais inquieta ou agitada, que vive como se o mundo fosse acabar amanhã, é mesmo difícil parar e contemplar o céu, por exemplo. Acaba-se entrando em um ciclo de autocobrança, que pode resultar em níveis elevados de estresse. "Chega segunda-feira e ninguém quer responder à pergunta "O que você fez no fim de semana?" com algo do tipo "Fiquei em casa, descansei, arrumei o meu armário". Existe quase uma obrigação de incluir no currículo alguma coisa interessante para contar aos amigos", afirma o psiquiatra Tito Paes de Barros Neto, do Amban (Ambulatório de Ansiedade) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. Segundo ele, as pessoas podem se desgastar para ter lazer -quando se postam na fila quilométrica para ir ao cinema ou quando viajam horas durante um feriado prolongado- ou acabar ficando contrariadas. "Quando se decide ver um filme em casa também pode ser aborrecido, ou porque a locadora está cheia ou porque não tem o filme que se quer."
A professora Fátima Cabral diz que as pessoas têm ansiedade de mostrar aos outros o que foi feito no final de semana, nas férias. "O tempo livre também adquiriu a noção de "produtividade'", afirma. A produção da farmacêutica Fabiana Andreotti Vaz, 26, é espantosa. Louca por fotos, ela vem carregada delas sempre que volta de viagem. Na última que fez, ao Canadá, tirou mais de mil fotografias em 15 dias. "Procuro aparecer ou colocar alguém de quem gosto no quadro, senão fica chato de ver", diz. Tudo vira alvo das lentes de Fabiana, que se preocupa em registrar os detalhes de cada lugar -a casa onde ficou, o ponto em que pegava o ônibus, os guias. "Não sei quando vou poder voltar, por isso acho melhor fotografar tudo para me lembrar depois", justifica. Para o pesquisador Nelson Marcellino, o indivíduo que fica preocupado em registrar cada detalhe congela o momento para vivê-lo depois por meio da foto ou do filme. "Mas ele não aproveitou, de fato, aquele instante." É como se estivesse acumulando provas, segundo Fátima Cabral, para mostrar aos amigos como aquela experiência rendeu o máximo de alegria. "Já não somos capazes de realizar algo apenas para o nosso deleite", avalia.
SUFOCO NAS FÉRIAS
O frenesi de mergulhar em atividades que trarão muito prazer fica ainda mais intenso quando se avistam as férias. "A mídia se incumbe de nos apresentar as formas mais atraentes de lazer, aquelas que estão na moda. O "ideal" seria, então, passar as férias, que tanto demoram a chegar, em um "resort" ou um spa, em vez de ficar em casa", diz Christianne Luce Gomes. A paixão pelo futebol fez o publicitário Rafael Andres Baraja, 29, unir o útil ao agradável: viajou à França, de férias, para assistir à Copa do Mundo, em 2002. Rafael só não esperava que a operadora de turismo comunicasse, na última hora, que não tinha conseguido os ingressos do jogo final para os turistas que, um ano antes, pagaram pelo pacote. A saída foi ir para o estádio segurando um papelão escrito em francês "compro ingressos", já que os cambistas vendiam a entrada por 2.000 dólares. Rafael conseguiu ver o jogo graças a uma jornalista americana, que vendeu o bilhete por um valor pouco superior ao da bilheteria. "Paguei o maior mico", diz. Não foi a primeira nem a última vez. Fã incondicional do Corinthians, Rafael faz qualquer coisa para ver o time jogar. "Você passa horas na fila para comprar o ingresso. Na hora de entrar no estádio, é a maior confusão, os banheiros são terríveis, as pessoas se machucam. Isso me incomoda, mas é o preço que pago para assistir aos jogos", diz ele, que já viajou a Buenos Aires, para ver Corinthians e River Plate, na Copa Libertadores da América, em 2003, sem tíquete. Adivinhe quem ganhou?
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