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Ele foi feito para agradar quem dá e quem recebe
O ato de dar e receber presentes com sabedoria reforça os vínculos afetivos e deve fazer parte da educação das crianças
IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Está aberta a temporada de presentes -e de expectativas, angústias, perdas e
ganhos para quem vai dar, receber, comprar, vender. Para o comércio, que
passou longe de um bom ano em 2003, a época concentra cerca de 30% do faturamento anual. Para o consumidor, inseguro com a situação econômica, a preocupação com os gastos ainda supera o impulso de comprar, em geral aguçado no fim de
ano -a última pesquisa sobre intenções do consumidor feita pela Federação do Comércio de São Paulo indica um maior número de "pessimistas", com menor disposição
para comprar. Mas, enquanto há afetos (e relações sociais), há esperança. Presente não é só
um fato econômico nem uma invenção do
mercado e da sociedade de consumo.
"Dar presente é uma instituição muito mais
antiga que o próprio mercado. As comunidades primitivas já conheciam formas de presentear, como a troca de alimentos", diz o sociólogo José Carlos Durand, do Centro de Estudos da Cultura e do Consumo da FGV (Fundação Getúlio Vargas).
Presente é agrado, e "não há possibilidade
de consolidar relações sem agrados, é o gesso
que dá o grude à nossa capacidade de conviver", diz o filósofo e colunista da Folha Mario
Sergio Cortella. O objeto é uma forma de fazer-se presente, querer ser lembrado (não por
acaso, também é chamado de lembrança). Para tanto é preciso despender parte de seu tempo vital com o outro.
Um bom presente, diz Antonio Carlos Bramante, professor do Departamento de Estudos do Lazer da Unicamp, é aquele que foi longamente "matutado" para surpreender quem
recebe. Isso exige doação de tempo, a mercadoria mais nobre. Como dá trabalho, a solução moderna é correr para o prático.
O presente pode ser dado sem ter sido escolhido, como o vale-CD, símbolo da impessoalidade. Talvez seja uma solução para presentear alguém que você não conheça -desde
que não seja o Cortella: "Se é para ganhar um
vale-CD, prefiro ganhar dinheiro e gastar como e onde quiser", diz ele.
Situações como essa são, para Durand, criadas por exigências comerciais que vão além da
função social do presente. Isso começou, segundo ele, logo após a Segunda Guerra Mundial, quando a comunidade mercadológica
(publicitários e lojistas) dos países desenvolvidos criou um calendário de comemorações
obrigatórias, levando as pessoas a se presentearem independentemente das relações afetivas.
Já o presente não regulado por relações de
mercado é aquele que você compra no momento em que aparece, para alguém de quem
você gosta, diz Durand. O calendário impõe o
constrangimento de presentear pessoas definidas em dias definidos e resulta no presente
que vai ficar eternamente na gaveta ou será
devolvido à loja no dia seguinte.
O fato é que, com ou sem mercado, na prática, todo mundo tem de dar presentes. Desde
sempre. "Na antropologia, há o conceito de
dom, dádiva já nas sociedades tribais", diz o filósofo e professor da USP Renato Janine Ribeiro. "No circuito de dom (o dar) e contradom (o receber), você ajeita a vida social."
Para Janine Ribeiro, até o mal-afamado amigo-secreto serve para dar uma "azeitada" no
grupo, apesar de ter aquela característica meio
selvagem do sorteio, no qual você sempre pode tirar quem não gosta e ser sorteado por
quem não gosta de você. Bom, mas se tem de
ser feito, que seja feito direito.
A terapeuta de casais e família Tai Castilho
diz que, quando o presente é expressão de
uma afetividade experienciada e construída, é
sempre um gesto de reconhecimento, de legitimação do outro. Para isso é preciso sair um
pouco de si mesmo, poder olhar o outro como
ele é, enxergar o que ele gosta. Quem recebe
também precisa perceber a dimensão do afeto. E o que o outro pode oferecer não precisa
ser muito: um pacote bonito ou um bilhetinho
bem-humorado já faz a diferença. O que não
dá é ficar cobrando presente.
"Não é algo a ser cobrado. Quem reclama
por não ganhar esse ou aquele presente, na
verdade, está precisando de outra coisa. Não
de objetos, mas de afetividade", diz Castilho.
Já a pessoa boa de dar presente, aquela que
acerta sempre, não fica olhando só para o próprio umbigo, diz a psicóloga Suely Gervetz.
Em termos espirituais, "presentear é uma manifestação de superar o ego, literalmente, de
caridade e generosidade", diz o escocês Wil-
liam Stoddart, estudioso de religiões comparadas. O presente ideal, ele explica, tem de ter
uma natureza qualitativa, deve ser capaz de
trazer uma graça, ser um signo exterior de
uma graça interior.
Uma dessas graças é a valorização do presenteado. "É comum presentear gente de idade mais avançada com "coisas de velho': pijama, robe, chinelo. Por que não um batom,
uma bela camisa, bermudas? Em vez de passar
a mensagem "você é velho", expressa "você é
bonito'", diz a psicóloga especialista em maturidade Maria Celia de Abreu.
Às vezes, é o próprio idoso quem manda a
mensagem ao dar um presente de gaveta, para
economizar ou por comodismo. "É uma furada", diz Abreu. "Quem recebe presente de gaveta percebe na hora, e quem presenteou dá
atestado de velhice."
Há também o "presente malvado", este sem
distinção de idade e que pode sinalizar muitas
coisas, como o mau humor da pessoa que
comprou. O que fazer num caso deste? "Depende do presenteado. Vai ser uma guerra se
ele aceitar o desafio", diz Gervetz. Felizmente,
essa ainda não é uma prática muito disseminada. Os presentes da paz continuam os mais
populares.
Os de Natal, por exemplo, entre outras coisas, "atualizam" o costume de presentear o recém-nascido (a nova vida). Já na Antiguidade,
os presentes eram oferecidos em ocasiões especiais, como a entrada na maioridade e o casamento. Eram também uma forma de estabelecer contato entre diferentes civilizações,
conta Anna Veronica Mautner, psicanalista e
colunista da Folha. Dignitários de um país levavam as coisas de sua terra para oferecer ao
outro povo. "Foi o começo da globalização",
brinca a psicanalista.
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