São Paulo, quinta-feira, 05 de dezembro de 2002
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outras idéias anna veronica mautner

Todos querem se beneficiar um pouquinho da luz que emana da figura "grifada" -e tome-lhe convites. Só a intimidade é que desanda. A figura pública fica sem tempo para si.

As grifes humanas

Demanda muito esforço, persistência e objetivo bem claro criar uma grife.
Para que um perfume seja o Chanel nš 5, com toda a sua aura, é preciso tantas coisas que nem vale a pena entrar nessa seara. Cair no gosto de quem forma o gosto dos outros tem algo de "ciência", muita observação, muita paciência e senso de oportunidade -e, mesmo assim, nada garante que dê certo. Na concepção de uma grife, sorte e acaso contam muito. Isso vale para músicos, músicas, roupas, livros, médicos, costureiros, cabeleireiros, decoradores, arquitetos e paisagistas.
Há muito de mágica por aí. Constituída a boa imagem (primeiro passo), sabemos que muitos a estarão admirando, muitos vão querer aproximar-se do produto, tê-lo, exibi-lo e, para tanto, não vão economizar sacrifícios.
Quando uma pessoa admirável é vista como tal, é flagrada usando um certo produto, pode-se ter certeza de que a dupla ganhará espaço na mídia. E, assim, valores vão se agregando a um e a outro. As "campanhas-testemunho" selam a sorte de muitos projetos.
Senhor fulano frequenta tal bar, tem mesa cativa lá. Sorte maior para ambos. As pessoas enaltecem o lugar, e o lugar lucra com essa presença. O uso de Chanel nš 5 mantém a imagem de tal senhora, que mantém o perfume em alta.
Até aí chovi no molhado. Todo mundo a esta altura do século 21 sabe mais ou menos que isso é assim e que não é qualquer um que vai para a Ilha de Caras. E, mesmo que certas pessoas sejam pagas para ir até lá, a ilha continua um símbolo, disputado por muitos, mas ainda depende da presença de "seres-grifes" para não perder a luz dos holofotes e continuar vendendo mais e mais publicações.
A receita que regula frequência e intensidade de exposição "ótima" para manter -sem banalizar- a imagem é a alma do negócio. Receita única não existe.
Mas vejamos o que significa para alguém tornar-se grife.
Convites, telefonemas, homenagens se adensam. A agenda fica preenchida, e a liberdade de escolha encolhe. Todos querem se beneficiar um pouquinho da luz que emana da figura "grifada" -e tome-lhe convites. Só a intimidade é que desanda. A figura pública fica sem tempo para si. Sem liberdade para criar seus próprios rituais íntimos. Quando a grife está bem instituída, tudo o que acontece em seu entorno que não tenha sido planejado ou previsto é difícil de impor e agrega-se como mais uma peculiaridade que enriquece a grife. O "eu" precisa ir cada vez mais para o fundo, fora do acesso do olhar do outro. É questão de sobrevivência.
Ao "eu" só eu tenho acesso -lá no fundo da minha solidão.
O cinema fabricou muitos "seres-grifes". Foi a primeira manufatura em escala mundial de "seres-grifes".
Hoje, essa criação está ordenada e disponível. Equipes multidisciplinares atuam sem parar. É muito difícil no reinado do quarto poder (a mídia) campeões permanecerem à sombra. Os fabricantes de grife precisam de matéria-prima, e os candidatos a grife precisam dessas equipes. Negar-se a ser imolado no altar da mídia assanha mais ainda. Figuras vitoriosas e misteriosas despertam mais interesse ainda. Mesmo institucionalmente, o jogo da sedução tem sua graça.
É preciso estar alerta aos perigos que se vive na condição de "grifado". Desaparece a mudança. Impõe-se a paralisação. O público e os "paparazzi" querem bis. Bisar é repetir.
A título de exemplo, lembremos Carlitos, de Charles Chaplin. Ele bem que tentou tornar-se Grande Ditador e Monsieur Verdoux, mas as reprises na TV são do Carlitos. Marilyn Monroe também não conseguiu.
Uma vez preso no casulo da grife implacável, é difícil tornar-se borboleta.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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