São Paulo, quinta-feira, 06 de julho de 2000
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outras idéias

O naufrágio de muitos internautas

Mario Sergio Cortella

Há mais de um século, o francês Júlio Verne publicou uma de suas mais encantadoras e assustadoras obras, "Vinte Mil Léguas Submarinas". Na época do lançamento, 1870, a maior parte das pessoas que tinham acesso a livros dominava minimamente o latim, seja por ser disciplina constante do currículo escolar em muitos países seja por interesses específicos. Por isso não ficou estranho que o romancista tenha chamado de Nemo ao enigmático capitão do Nautilus. No correr dos últimos 130 anos, porém, o latim, que há alguns séculos perdera seus falantes, perdeu a maior parcela dos seus conhecedores e, por consequência, no Capitão Ninguém (traduzindo para o português) desfez-se parte da aura misteriosa.
Restou, no entanto, para além da força literária dessa precursora obra de ficção científica, um caráter premonitório: a possibilidade de as pessoas se extraviarem nas novas profundezas abissais, embarcando, agora, não mais no Nautilus, mas, isso sim, em um computador, conduzidas, mais uma vez, por Ninguém.
Ora, a cada dia fala-se, mais e mais, sobre a triunfal entrada da humanidade na era do conhecimento; exalta-se a capacidade humana de estar vivendo, a partir deste momento, um período no qual o conhecimento será a principal riqueza. Tudo é fonte para o conhecimento, e a principal delas seria a Internet.
Devagar com isso! Não se deve confundir informação com conhecimento. A Internet, entre as mídias contemporâneas, é a mais fantástica e estupenda ferramenta para acesso à informação; no entanto transformar informação em conhecimento exige, antes de tudo, critérios de escolha e seleção, dado que o conhecimento (ao contrário da informação) não é cumulativo, mas seletivo.
É como alguém que entra numa livraria (ou em uma bienal do livro) sem saber muito o que deseja (mesmo um simples passear): corre o risco de ficar em pânico e com uma sensação de débito intelectual, sem ter clareza de por onde começar e imaginando que precisa ler tudo aquilo. É fundamental ter critério, isto é, saber o que se procura para poder escolher em função da finalidade que se tenha.
Os computadores e a Internet têm um caráter ferramental que não pode ser esquecido; ferramenta não é objetivo em si mesmo, é instrumento para outra coisa. Por isso há um ditado atribuído aos chineses que se diz: "Quando se aponta a Lua, bela e brilhante, o tolo olha atentamente a ponta do dedo".
O instigante Lewis Carol, na sua imortal "Alice no País das Maravilhas", a ser lida e relida, tem duas personagens bem expressivas para entendermos os tempos atuais: um coelho (como nós) sempre correndo, sempre olhando o relógio e sempre reclamando "estou atrasado, estou atrasado"; e um insondável gato, que, no alto de uma árvore, tem um corpo que aparece e desaparece, às vezes ficando só a cauda, às vezes, só o sorriso. Há uma cena (adaptada aqui livremente) na qual Alice, desorientada, vê o gato na árvore e pergunta: "Para onde vai esta estrada?". O gato replica: "Para onde você quer ir?". Ela diz: "Não sei; estou perdida". O gato não titubeia: "Para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve...".
Sem critérios seletivos, muitos ficam sufocados por uma ânsia precária de ler tudo, acessar tudo, ouvir tudo, assistir tudo. É por isso que a maior parte dessas pessoas, em vez de navegar na Internet, naufraga...


MARIO SERGIO CORTELLA, filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortêz/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez ao mês



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