|
Próximo Texto | Índice
Outras idéias - Dulce Critelli
O limite das arquiteturas
[...]LUGARES DE MORAR SÃO BAÚS DE HISTÓRIAS, ÁLBUNS DE RETRATOS, ANÚNCIOS DE PROVÁVEIS FUTUROS
Ainda não li, mas comprei o livro "Arquitetura da Felicidade",
de Alain de Botton,
um filósofo contemporâneo
atualmente em cena. Tenho uma atração sem medida por essa condição humana
que é morar, na qual moradia e
morador se entrelaçam em infinitas e caleidoscópicas combinações.
A arquitetura e a moldagem
dos locais de habitação (sejam
casas, cidades, locais de trabalho, escolas, entre outros) são
filosofias de vida. São, ao mesmo tempo, convites e expressões de modos de ser de indivíduos ou de grupos.
Eles revelam quem somos,
como somos, para que somos:
nossa necessidade de ordem, a
desarrumação das nossas
idéias e dos nossos sentimentos, nossos medos e apegos,
nossa preguiça e nossas esperanças, nossos trejeitos, nossas
mais puras intimidades e idiossincrasias.
Lugares de morar são baús de
histórias, álbuns de retratos,
anúncios de prováveis futuros.
São recintos onde lidamos com
a morte, com a vida, com a política, com as religiões, com a
economia. Pontos desde onde
fixamos os limites e os horizontes para nossas andanças, investidas, ousadias.
Por isso, podem se tornar
fortes, prisões, templos, câmaras de tortura, parques de diversão, ninhos de amor...
Moradias são lugares pessoais, mas também demarcam
onde podemos ser encontrados
pelos outros e nos referem à comunidade. São as paragens desde onde estabelecemos e nos
relacionamos com vizinhos,
com estranhos, com o bairro,
com a cidade, com o tempo e
com as épocas históricas, com
os eventos do dia-a-dia.
A loucura da mulher que passa horas, todos os dias, na calçada da minha casa atravessa as
portas e as janelas e atrapalha
meu trabalho, minhas conversas, meu sossego. Ela não sabe
que seus gritos conversam comigo e mexem com meus sentimentos, com meus pensamentos e meus preconceitos. Não sabe que entra na minha casa e
interfere na minha vida. Nem
sabe que me ensina que a minha casa é devassada e não me
protege como imagino ou como
desejava.
Parodiando Ortega y Gasset,
o filósofo espanhol, nossa casa
é ela mesma mas também suas
circunstâncias e adjacências. E
lembrando Milton Nascimento, "em volta dessa mesa (...)
uma cidade...".
Moramos numa casa, mas
essa casa mora "lá fora". Se
ruas de morar se convertem
em ruas de comércio e os vizinhos vão embora, somos nós
que ficamos sozinhos. Os arredores das nossas casas são os
arredores de nós mesmos.
Nossas casas põem o mundo
perto de nós. Elas são como
um tabuleiro onde acontece o
jogo entre nossos propósitos e
os interesses do mundo. A arquitetura de casas e de cidades
delimita as nossas possibilidades, mas é a nossa alma que dá
o limite das arquiteturas.
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia - Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
Próximo Texto: Correio Índice
|