São Paulo, quinta-feira, 06 de dezembro de 2001
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outras idéias

Em um diálogo, ele diz alguma coisa que não ficou clara, e você responde: Não caiu a ficha. Ele fica olhando. De qual ficha está falando? Ora, ele já cresceu usando cartão telefônico

Os dentes do tempo

Mario Sergio Cortella

No primeiro século de nossa era, o latino Ovídio escreveu "tempus edax rerum" (tempo devorador das coisas), retomando uma epigrama do poeta lírico grego Simónides (5 século a.C.), para o qual "o tempo de dentes afiados tudo consome, até as coisas mais fortes". Logo no início do século 17, Shakespeare, na comédia "Medida por Medida", trazia de volta a expressão "os dentes do tempo". O tempo devora certezas, materialidades, expressões, relações e anuncia rupturas e esquecimentos.
Não precisamos recorrer somente aos clássicos para tal circunstância perceber; situações simples e pueris nos mostram isso. Exemplos? Para esses meninos e meninas que estão agora começando a adolescência, alguns chavões que nós, mais idosos, usamos no dia-a-dia (originados das nossas modernidades tecnológicas do século 20) não fazem o menor sentido. Em um diálogo (diálogo?), ele diz alguma coisa que não ficou clara, e você responde: Não caiu a ficha. Ele fica olhando. De qual ficha está falando? Ora, ele já cresceu usando cartão telefônico e, se tiver menos de dez anos de idade, nunca viu uma ficha telefônica. Como é que vai saber o que você quer dizer? Antigamente, isto é, há duas décadas, quando uma conversa estava chata, olhava-se para o interlocutor e se dizia: Ah, vire o disco! E, para os infantes, que só conhecem o CD (com apenas um lado tocável) e jamais utilizaram um disco de vinil? Eles não têm idéia daquilo de que se está falando. Inúmeras crianças e jovens nunca viram vários objetos do cotidiano de adultos com os quais convivem (convivem?) -e isso é de dez anos para cá. Nós os vimos e nem sempre nos acostumamos ou sabemos lidar com eles; o pior é que, com frequência, nós nos distraímos da passagem do tempo.
Outro exemplo? A maior parte dessas crianças com menos de 12 anos de idade nunca viu uma máquina de escrever -portanto nem sabe o que é isso! Muitos passamos horas e horas a repetir "a, s, d, f, g, c, l, k, j, h, a, s, d...". Atenção: até uma década atrás, o teste de datilografia fazia parte do exame de seleção para qualquer trabalho. Há dez anos! Não falamos aqui do século 19, mas de 1991; datilografia era um diferencial de formação (ou, como se diria agora, um diferencial competitivo), a tal ponto que a fala de um pai ou de uma mãe foi monocórdica para muitos de nós: você tem de fazer curso de datilografia, senão você não vai ser ninguém, você não vai servir para nada na vida... Quantos fizeram curso de datilografia, até guardaram o diplominha ou o puseram num quadrinho e o penduraram na parede! Quanto vale um diploma de datilografia hoje?
Esse é um lado razoavelmente bem-humorado; porém os dentes do tempo (e da falta dele) deglutem vorazes também as afetividades. Em uma pesquisa feita há pouco nos centros econômicos mundiais, mostrou-se que, o convívio diário entre pais executivos e seus filhos não ultrapassava 5 minutos, inclusive no Brasil. O número de vezes que o pai ou a mãe encontram o filho é muito pequeno. Há até mesmo um fato tristemente inédito: nas metrópoles, somos a primeira geração de adultos que sai de casa mais tarde que os filhos. Por muitos e muitos anos, séculos até, os adultos acordavam as crianças (filho, vá para a escola, tome o café, tome um banho, olhe a camiseta); hoje, o filho levanta sozinho e sai às 6h30 ou 6h45 na van ou no ônibus, e o pai e a mãe, acordando mais tarde, saem para trabalhar às 7h30, 8h. Assim, essa família quase não se encontra, filhos são "criados" por outras pessoas, e isso resulta em um impacto negativo na consolidação de uma comunidade afetiva.
O tempo não é só passagem; é, também, esgotamento, restando para muitos apenas alguns horizontes de perplexidade tardia.


MARIO SERGIO CORTELLA é filósofo, professor da PUC-SP e autor de "A Escola e o Conhecimento: Fundamentos Epistemológicos e Políticos" (ed. Cortez/IPF), entre outros, escreve aqui uma vez por mês


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