São Paulo, quinta-feira, 07 de junho de 2001
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outras idéias

Eu e a lei

Quem protege a calçada? Quem nos protege na cidade? É isso mesmo: nossa mente tem essa capacidade de integrar, aglutinar e condensar. Vira tudo uma grande insegurança

ANNA VERONICA MAUTNER

Não é de agora minha vontade de gritar nas orelhas dos moradores desta minha cidade como são horríveis as nossas calçadas. Descuidadas, sujas, esburacadas, exibindo aos passantes cada reforma feita pela companhia de gás ou pela Sabesp, que as deixam tapadas mal-e-mal, sem cuidado com a segurança dos pedestres. Nem vale a pena fazer referência à estética, desprezada como se vivêssemos num mundo de cegos.
Na infância, morei numa rua para onde convergiam os ônibus que vinham não só do centro mas também de toda a periferia do entorno. Apesar de sermos de bairro (Lapa), todos sabíamos a quem cabiam certas responsabilidades. Do leito da rua e da boca-de-lobo cabia ao governo cuidar. Nós assumíamos a limpeza, a segurança e a ordem -e até a estética- do nosso pedaço. Éramos gente simples, do pequeno comércio, mas sabíamos que a varrição e a lavagem da calçada tinha que ser feita até as oito da manhã. Se depois disso varrêssemos o quintal ou a loja, usávamos a pá de lixo, que eu desconfio que, se nada for feito a favor dela, estará ameaçada de extinção.
Na minha rua, era tudo de cimento riscado ou pontilhado. Liso não podia ser, porque senão a gente escorregaria quando estivesse molhado. Pela mais superficial das abordagens, percebe-se que havia respeito ao semelhante -e à estética. A existência desse espaço da cidade tratado como terra de ninguém vai definir muito da relação de cada um com a cidade. O que podia ser orgulho torna-se desamparo. Quem protege a calçada? Quem nos protege na cidade? É isso mesmo: nossa mente tem essa capacidade de integrar, aglutinar e condensar. Vira tudo uma grande insegurança.
Uma notícia no jornal sobre o lixo na cidade deu a entender que tudo continua como dantes. Tudo indica que continuo responsável pela calçada na frente donde moro. Só falta alguém que me faça obedecer a tal da lei. Temos um certo tipo de conhecimento, apesar de não sabermos de onde vem: barulho só até as dez da noite, lixo em saco de plástico fechado etc. Hoje, por exemplo, nós sabemos que é proibido soltar balão porque faz incêndio nas matas, e os ambientalistas gritam sem parar para evitar essa tragédia. E ninguém grita para cuidar da calçada, talvez porque não saibamos quem deve gritar.
No tempo do balão livre, tinha-se medo de busca-pé, aprendíamos sobre a dor da queimadura em volta de fogueiras quando soltávamos estrelinhas e traques. Vou dizer uma besteira, mas tenho tanta vontade de acreditar nela. Sempre que um balão ia caindo, um bando de crianças corria atrás até pegá-lo. Será que por isso não fazia incêndio? Existia terreno baldio, as cercas eram baixas. E assim dava para as crianças correrem atrás dos balões. Uma história bonita, mas não pode ser verdade que só a liberdade das crianças fosse suficiente para evitar os incêndios.
Quando surgiu a ameaça do apagão, vi o ressurgimento da gente de antigamente. Cada um imaginando, inventando, procurando formas de diminuir o gasto de energia elétrica. Essas são as pessoas com as quais eu fui criada. Gente que se sente capaz de modificar, criar em seu próprio benefício.
Se o "pai-governo" faz tudo por nós, ficamos impedidos em nossa liberdade de criar. Todos iguais diante do grande provedor. Quando eu não sei que fim levou uma regra a que eu obedecia, vejo, colocada de escanteio, a minha autonomia. Neste lamentável episódio do apagão, durante quase uma semana senti de volta o mundo onde se trocavam idéias, se procuravam soluções, se assumiam responsabilidades. A capacidade de mudar o mundo não se esgarçou. O erro está em algum outro lugar. Lamento dizer que gostei de ver que não estamos mortos.



ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@attglobal.net



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