São Paulo, quinta-feira, 08 de maio de 2008
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NEUROCIÊNCIA

Suzana Herculano-Houzel

Foi algo que você comeu?

Meu avô era médico e, entre sabedorias variadas e a capacidade de nos adivinhar doentes com um olhar, tinha um truque infalível para descobrir o que tinha nos feito mal: perguntava o que menos gostaríamos de comer naquela hora, aquilo cuja simples idéia já nos deixava enjoadas ("ovo de Páscoa de chocolate crocante com morango", respondi uma vez, com engulhos). Ele estava aplicando o que não sabia ser neurociência pura: a memória dos nossos estados fisiológicos, monitorados e registrados em permanência por uma parte do córtex chamada ínsula.
A ínsula, uma ilha de córtex abaixo da superfície do cérebro, ganha cada vez mais atenção por seu papel na representação dos estados internos do corpo, tanto aqueles que associamos a emoções e a acontecimentos externos -um aperto no peito de apreensão, os músculos crispados de tensão- quanto aqueles que informam sobre as vísceras. Dor de barriga, enjôo, dor de cabeça e todos os mal-estares que resultam de alterações indesejáveis no corpo são trazidos à atenção do restante do cérebro pela ínsula, que recebe das vísceras informações sobre o estado destas e permite que se tomem as providências adequadas.
Além de sinalizar quando algo não vai bem no corpo, a ínsula é capaz de associar à sensação física um registro da sua causa. Se o chocolate fica mal digerido no estômago, seus odores podem ser detectados no ar exalado e levados ao conhecimento da ínsula, que os associa ao mal-estar. Feita a associação, basta o cheiro de mais chocolate, ou a simples idéia dele, para evocar na ínsula... mais mal-estar.
Para que tanto mal-estar? Para nos manter à distância do que fez mal, oras, tanto durante o enjôo quanto depois dele. Ratos de laboratórios privados de suas ínsulas perdem a capacidade de evitar água com drogas enjoativas e bebem à vontade, intoxicando-se. Com uma ínsula normal, o primeiro enjôo costuma bastar. Ainda bem: em um mundo sem rótulos, é fundamental que quem sobreviver a uma refeição tóxica ou estragada recuse provar dela uma segunda vez.
Por isso, não como mais goiabas. Nada contra a fruta, e talvez eu pudesse comê-la hoje impunemente. Mas passei tão mal por causa de uma quando criança que meu cérebro resolveu me manter longe delas. Não preciso nem me preocupar em ficar conscientemente à distância: minha ínsula faz isso por mim até hoje.


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, professora da UFRJ, autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (Editora Sextante) e do site O Cérebro Nosso de Cada Dia

(www.cerebronosso.bio.br)

suzanahh@folhasp.com.br



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