São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002
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outras idéias

anna veronica mautner

Evitar a queda


O bebê demora um tanto para poder ficar em pé. O idoso luta para continuar em pé. A queda, para o idoso, indica a proximidade do indesejado fim


Voar é um dos sonhos mais arraigados da humanidade, assim como o medo de cair é um dos temores mais constantes. As figuras mitológicas aladas, como Ícaro, são comuns; os místicos exercitam-se durante uma vida inteira para, um dia, poderem levitar. A alma dos mortos sobe... Ressurreição é subir aos céus. Leonardo Da Vinci já imaginava um avião. O motor fez voar "o mais pesado que o ar", libertando-nos da força que nos mantém ligado à Terra.
É também um sonho profundo e arraigado do qual nem dá para falar o sonho de jamais cair, de nunca deixar cair nada que está em nossas mãos, de não escorregar ou tropeçar. De que o leite não derrame, de que a comida não caia do garfo, de que nossas lágrimas não escorram. Queremos ainda musculatura que não desabe. Que as inevitáveis rugas não sejam para baixo para evitar um ar triste.
Produtos da tecnologia de ponta, por outro lado, levam-nos a voar. Há quase 50 anos, ouvimos a voz do primeiro astronauta cujos olhos viram a Terra por nós dizendo: "A Terra é azul!".
No mundo do entretenimento, das artes, artistas esmeram-se há séculos no desenvolvimento de aptidões que nos esquivem do próprio peso. No início do século passado, o balé clássico chegava ao seu apogeu enquanto, em outro cenário, o mais pesado que o ar, dotado de motor e velocidade, saía do chão. No balé clássico, equilibrando nas pontas dos pés, nos braços e no colo dos bailarinos, as bailarinas querem nos fazer crer que são plumas soltas no ar. Outros artistas exercitam-se obsessivamente para chegarem à imagem de "sem peso".
No circo, entretenimento mais antigo, seus mágicos quase sempre lutam contra a força da gravidade. O que faz o homem na corda bamba senão fazer de conta que levita? E o salto mortal dos trapezistas, ginastas, equilibristas, acrobatas e malabaristas? Não é a luta eterna para parecer em vão?
Quanto mais o artista ou o esportista dominam a relação com a força da gravidade, maiores são os aplausos. Nos rodeios, os cowboys não podem cair. Na equitação, a queda equivale à penalidade máxima. Equilíbrio é o controle da relação massa/centro-da-gravidade. Ser dominado por essa força, que é a que mantém a ordem do universo, é um fracasso ante o sonho. Na mitologia ocidental, temos até a figura da queda como castigo por se ter comido da maçã proibida.
Foram construídos jardins suspensos, pirâmides, a torre de Babel, o World Trade Center -tudo sempre para o alto, equilibrado para suportar, ereto, o que der e vier. A postura do ser humano, bípede/ereto, libera os braços e as mãos que nos ajudam a transformar e criar com nosso engenho e arte. E, depois que ganhamos o poder de colocar o homem em órbita, de mandar engenhos para a Lua e para Marte, parece que percebemos existirem problemas em ficar, em nos equilibrarmos aqui mesmo, na Terra. Fizemos um giro. Temos de reencontrar aqui o equilíbrio. Voltamo-nos para a procura do nosso centro, do centro dos objetos, não mais voando, e sim melhorando o nosso contato com o chão, com o nosso peso e o nosso equilíbrio.
Os artistas não abandonam o sonho do céu, mas também vão enveredando por um caminho de sensibilização da sola do pé, descalça, sentindo o chão e o peso. É a dança moderna e o retorno às danças folclóricas que procuram estabilidade e raízes.
Parece que, apesar de conquistarmos o poder de atravessar a barreira do som, mantivemos, intacto, o desejo de não perder o equilíbrio, de não cair.
O bebê demora um tanto para poder ficar em pé. O idoso luta para continuar em pé. A queda, para o idoso, indica a proximidade do indesejado fim. Livrar-se da força da gravidade voando e dominar a força da gravidade não caindo nem deixando cair é pedra de toque do nosso imaginário de potência e força.
Bailar, levitar, lançar, aparar são objetivos queridos. Mesmo nos esportes mais convencionais, estamos aí no mesmo tema: captar a bola que chega, chutá-la a gol, na cestinha. É o capoeirista que não pode encostar no chão, é o boxeador que não pode ir a nocaute.
Nossa auto-estima depende de como nosso corpo lida com o equilíbrio. Podemos voar com motor, mas fincar os pés no chão é uma missão pessoal, não-terceirizável. Multiplicam-se as técnicas de trabalho corporal em que a soltura e o equilíbrio em contato com o chão são o tema visado. E aí vão se seguindo a ginástica, a natação, o RPG, o rolfing, as artes marciais, a ioga e outros tantos sistemas que nos treinam para ficar de pé, enquanto foguetes e aviões voam sobre nossas cabeças.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de psicologia de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@attglobal.net


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