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São Paulo, quinta-feira, 09 de outubro de 2003
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Combate ao desperdício de alimento e defesa da saúde do corpo e do planeta são algumas das metas do novo conceito

Comida entra na mira do consumo consciente

Saurabh Das/France Presse
Por ano, 6 milhões de crianças morrem de fome no mundo; ao lado, crianças dividem comida na África, onde 13 milhões de pessoas passam fome
 
Paulo Whitaker/Reuters
Mamões-papaia em mercado de São Paulo; do plantio ao consumo, o Brasil desperdiça 64% do que produz


DA REPORTAGEM LOCAL

O mundo produz diariamente comida em quantidade suficiente para alimentar -e bem- toda a população do planeta, no entanto 24 mil pessoas morrem todo os dias por não terem acesso a ela. No Brasil, a falta de alimento na mesa confronta-se com uma realidade aparentemente oposta: 44 milhões passam fome enquanto 70 milhões estão acima de peso -o que não significa que se alimentem de forma saudável. Mas o contra-senso não pára aí: todos os dias, no Brasil, o destino de 70 mil toneladas de alimentos é o lixo. Um novo conceito chega ao Brasil com o objetivo de reduzir o desperdício e equilibrar a balança da distribuição de comida no país. É o consumo consciente na alimentação, lançado nos Estados Unidos há quatro anos pela ONG New American Dream e cujo nome já explica a que veio: ir contra o "american dream" (sonho americano), estilo de vida baseado, entre outros, no "quanto mais, melhor". Segundo a ONG, os americanos consomem mais de 40% da gasolina do mundo e mais papel, alumínio, energia, água e comida per capita do que qualquer outra sociedade do planeta. Por aqui, uma mentalidade antiga ainda persiste, a filosofia que diz "melhor sobrar do que faltar" e que resulta na valorização da fartura, especialmente de comida. O fato é que de 20% a 30% dos alimentos adquiridos para abastecer uma casa vão para o lixo. "É uma herança dos anos de inflação, em que era melhor estocar por razões econômicas, em vez de comprar "picadinho", o que deveria ser feito hoje", diz a nutricionista Tereza Watanabe, da Diretoria de Alimentação do Sesi-SP, que desenvolve o programa Alimente-se Bem por R$ 1 -de aproveitamento integral dos alimentos. O desperdício de comida não se restringe às residências. Apenas os supermercados descartam cerca de 13 milhões de toneladas de alimento por ano, e as feiras livres jogam fora mais de mil toneladas em frutas, legumes e verduras. São R$ 12 milhões em comida jogados fora, o que poderia alimentar 30 milhões de carentes por ano. A constatação é da ONG Instituto Akatu, que desenvolveu um extenso estudo sobre o assunto, denominado "A Nutrição e o Consumo Consciente", que está disponível em seu site. "O consumidor tem de saber que o ato da compra é divido em três fases: a compra em si, o consumo e o descarte do que sobrou. O consumo ético nada mais é do que levar em conta esses fatores, que estão atrelados uns aos outros", diz o presidente do Akatu, Helio Mattar. No ato da compra, o consumidor engajado avalia o produto com base em critérios que incluem a qualidade da matéria-prima utilizada na produção, o valor nutricional do alimento e a responsabilidade social do fabricante. Nessa tarefa, os melhores aliados são as certificações conferidas a empresas alimentícias, como os selos Empresa Amiga da Criança, que assegura não ter havido mão-de-obra infantil em sua fabricação, ou SBC-Funcor, que garante que o alimento não oferece risco ao sistema cardiovascular (leia mais sobre selos na página 8). A forma de preparo do produto é a segunda preocupação desse consumidor, que vai, por exemplo, aproveitar o máximo dos alimentos para reduzir o desperdício. E o último passo é o descarte responsável do que sobrou. Nesse caso, ele participa do processo de coleta seletiva do lixo. Essas ações integram a chamada política dos três "erres", conjunto de medidas que visam reduzir o consumo e reutilizar e reciclar matérias-primas e recursos naturais. Reduzir não é comer menos, mas adquirir o suficiente para o consumo. "Além de planejar desde o que se coloca no prato, para não precisar jogar fora, é essencial se programar antes de ir ao supermercado, para comprar apenas o necessário", diz a presidente da Sociedade Brasileira de Alimentação e Nutrição, Silvia Cozzolino (leia mais na pág. 8).

Consumidor mirim
O consumidor engajado cuida também da educação das futuras gerações, promovendo hábitos de alimentação que seguem os preceitos do consumo ético. Se uma criança cresce vendo que na casa não se come talos nem folhas de verdura, por exemplo, vai adquirir o hábito de descartar essa parte do alimento. Para quebrar esse ciclo, o professor de nutrição pediátrica da Unifesp José Augusto Taddei acredita que a consciência no consumo deve começar logo na infância. "Antes dos sete anos, a criança não tem hábitos, apenas os recria, portanto é fácil ensiná-la a não deixar comida no prato e, o mais importante, mostrar a ela o papel de cidadania que está exercendo não desperdiçando alimentos, e não aquela conversa em tom bravo de "Tanta gente passando fome, e você não quer comer'", diz Taddei, que participou da coordenação do manual do Instituto Akatu.

Lei da oferta
Como a comida que o cidadão não desperdiçou vai chegar às mãos de quem não tem acesso a ela? Segundo o presidente do Akatu, pela lei da oferta e da procura. "Vão para o lixo diariamente 70 mil toneladas de alimentos. Evitando o desperdício, essa comida estaria no mercado, o que aumentaria a oferta e diminuiria o preço. Então pessoas de baixa renda teriam acesso cada vez mais à comida." E, se a cultura do não-desperdício prevalecer, a tendência é que os preços se equilibrem em um patamar mais baixo, explica Márcio Bobik Braga, professor de economia da FEA (Faculdade de Economia e Administração da USP). (APO)


O brasileiro joga fora 1 kg de lixo por dia; desse total, 65% é lixo orgânico, 25% é papel, 4% é metal, 3% é vidro e os demais 3%, plástico




O Brasil atualmente produz 25,7% mais alimentos do que necessita para alimentar sua população




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