São Paulo, quinta-feira, 09 de dezembro de 2004
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outras idéias

anna veronica mautner

O branco e o brilho são nosso critério de limpeza. No opaco, eu não tenho a mesma certeza que o brilho me garante

Como moramos nós, brasileiros

Não faz muito tempo me pediram para falar sobre "como mora o brasileiro". Fiquei intrigada, pois nunca havia matutado a respeito e comecei a questionar se existiria um jeito nosso de morar.
Dando muitos tratos à bola, concluí que sim e resumi tudo em duas idéias bem abrangentes: na medida do possível, deve brilhar o que pega brilho e ser simétrico tudo o que puder ser.
Saudosistas que somos (não é à toa que a palavra saudade é nossa, só nossa) aderimos ao novo, ao moderno, ao mesmo tempo que tendemos a guardar, no nosso cotidiano, muitas coisas do velho e do antigo. Somos mesmo saudosistas, nostálgicos de um certo idealizado universo rural e também da vida dos velhos bairros e vilas. Sentimos falta não só de coisas, mas também de certos momentos vividos. Quando falamos da nossa casa, aquela que ficou para trás, mostramos carinho por um passado rural que, por incrível que pareça, continua permeando o nosso dia-a-dia nas cidades e também nas metrópoles. Já vou adiantando um exemplo para não ficar muito etéreo: o jeito que lavamos o chão. Jogamos baldes e baldes de água, que depois empurramos com o rodo para as sarjetas e, dali, provavelmente, as águas voltam ao mar. Nenhuma noção de economia, nenhuma consciência de desperdício. Pode parecer paradoxal, mas a esse jeito interiorano se contrapõe um fascínio pelo novo.
Quando o plástico chegou ao Brasil na década de 50 do século passado, ele nos tomou de assalto. Espalhou-se pela casa inteira, pelos utensílios, pelos móveis e pelo chão. O bom do plástico é que ele brilha fácil.
É parte do nosso ideal de mundo ostentar brilho em todas as ferragens, torneiras, maçanetas e grades. Já que o chão tem que brilhar, os alumínios devem reluzir e as cerâmicas têm que refletir, nada melhor do que recorrer ao plástico, ao cromado, ao sinteco etc. Das pratas, cobres e bronzes, nem se fala. Não há que economizar para mantê-los reluzentes. Isso tudo pode parecer superficialismo ou mesmo artificialismo. Mas isso não é tudo, parece-me ligado, originalmente, mais à limpeza do que à beleza. Se brilha, está limpo, foi objeto de cuidado e capricho. Mármores têm que ser esfregados até ficarem brancos; cacos de cerâmica devem ser encerados. Aí, é mais importante o brilho do que o perigo do escorregão. Brilho fala do asseio da casa. Por sorte, chegaram os cromados e os sintecos, e a cena das mulheres ajoelhadas, esfregando palha de aço ou cera desapareceu. O cuidado com o brilho raia o absurdo de cobrir peças para evitar que pareçam encardidas. Mantemos os eletrodomésticos brilhando, vestindo-os com pseudo-saias, saiotes, babados e laçarotes que só são despidos para o uso. Não se vê o brilho, mas sabemos que ele está lá, é o que importa.
Não é de hoje que amamos o branco. Quer ofender uma dona-de-casa? Diga que alguma coisa na sua casa está encardida. Moramos pois, sem nenhum encardido e com todo o branco, mais branco, e todo o brilho possível. Nas fórmicas, preferimos as brilhantes. Nas panelas, materiais brilhantes também.
O branco e o brilho são nosso critério de limpeza. No opaco, eu não tenho a mesma certeza que o brilho me garante. Mas não é só isso que marca nossa visão de conforto e be-estar. A simetria é também uma de nossas marcas registradas. Os móveis são colocados lado a lado.
Continuamos gostando de guardar objetos e móveis de família. Os objetos herdados podem permanecer, desde que não aparentem decrepitude. Cuida-se para que o estofado também não aparente sua idade, também não se deixa porta de armário emperrada. Quando o ladrilho mostra a idade -fica meio amarelado-, quando as louças perdem o viço, trocamos. A madeira pode envelhecer desde que seja mantida devidamente envernizada ou encerada. Protegemos os estofados com capas laváveis.
Procuramos evitar as marcas do tempo enquanto vamos incorporando todo um arsenal de novidades eletroeletrônicas.


ANNA VERONICA MAUTNER é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora)
@>amautner@uol.com.br



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