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São Paulo, quinta-feira, 10 de julho de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

A velha casa de oração virou espaço de malhação. É lá que a gente se isola dos outros para ficar atento somente aos movimentos do organismo. Aí o divino é o soma, o fisiológico -o viver, não a vida

Templo da incomunicabilidade

Já vai longe o tempo em que "se ensimesmar" era entrar em contato com os desconhecidos escaninhos da consciência para aí passar em revista sentimentos, erros cometidos e pecados. Havia nisso todo um gestual, um certo clima. O olhar era baixo, reinava o silêncio, fazia-se recitação de orações, cânticos ou mantras. Hoje é comum em casas de oração, de quaisquer confissões religiosas, rezar em voz alta, pôr-se em roda, segurar as mãos num religar-se ao outro mais do que se ligar a si mesmo. Nada a favor ou contra. Apenas constatações.
A procura de si continua pedindo silêncio e isolamento, só que agora se sai à procura do ritmo do batimento cardíaco ou respiratório, das sensações de contração, extensão ou alongamento muscular, da temperatura do corpo etc. É o "ensimesmar-se" moderno. Cortamos a comunicação com o "fora" e mergulhamos no discurso do mundo interno do corpo.
Muito já se disse que de médico todos temos um pouco. Pois hoje a velha casa de oração virou espaço de malhação. É lá que a gente se isola dos outros para ficar atento somente aos movimentos do organismo. Aí o divino é o soma, o fisiológico -o viver, não a vida.
Os mestres do viver estabelecem as rotinas a serem cumpridas, assim como por milênios fizeram os representantes do divino. A cada pessoa uma receita a ser obedecida em silêncio, na solidão, pressionada apenas por uma super-repressora voz que não promete nem fala de vida eterna, mas garante saúde permanente, envelhecimento tranquilo e morte saudável, sem dor. Antigamente, no tempo em que se fazia ginástica em conjunto, em um só ritmo, eram geradas turmas, patotas, às vezes até se ficava sabendo o nome dos outros. Exagerando, sem me distanciar muito da verdade, percebo nesse espaço chamado de academia o novo santuário onde a vida eterna é a juventude permanente. A esse lugar, a academia do corpo, contam os frequentadores, as pessoas vão para "sentir". Não se vai lá para pensar, paquerar, muito menos para se comparar. Para além do umbral da entrada, reina o corpo. Deixam-se fora cooperação, solidariedade, sorriso e Eros. É a sacralização da observação do funcionamento do corpo, ritual que seguimos com a maior frequência possível para evitar, ao máximo, as desprezíveis marcas da passagem do tempo.
O individualismo abandona o espaço do profano e sacraliza-se. Todo sinal de desgaste deve ser evitado. Sua visão é ofensiva. A própria construção das academias, das pistas de cooper, de isoladas salas de ginástica deve ostentar a aparência de novo. O frio, o calor, o vento não podem interferir nos rituais cotidianos dos corpos sarados. E são sarados sem que se pense em doença. Evitamos, sem cessar, o que nem se deve enunciar -que a velhice existe.
Para além do umbral das portas dos santuários do movimento corporal, preside a saúde. Só não sei para onde vai o erótico, tão ausente nos movimentos preconizados pelos mestres da saúde.
Ah! Lembrei! Eros fica fora, com a solidariedade, a comunicação, a cooperação.
Nas minhas últimas férias, percebi a presença do sarado cobrindo o erótico até na beira-mar. O mais admirado deixou de ser o mais perfeito e passou para o que tinha caminhado mais.
Às vezes, até caminham juntos os casais ou amigos, mas isso demanda uma afinação aeróbica invejável. Alongar, respirar, andar, correr: esse é o luxo almejado. Claro que há hora de jogar frescobol, vôlei, futebol na areia. Mas isso só é permitido depois de atender às exigências interiorizadas ditadas pelos mestres da saúde. Não é feio fazer esporte coletivo, desde que não se desdenhe o exercício de introspecção do organismo.
Incomunicabilidade não é solidão. Não dá "deprê". Sou eu me fazendo companhia, obedecendo aos ditames, às ordens, ao chamado da saúde. A existência dessa modalidade de comportamento é prova insofismável de que o homem precisa de "sagrado". O nosso próprio corpo é o "bezerro de ouro" do nosso tempo. Ícone, totem, nova religião.
Adoração é ato que se faz sozinho na relação intensa com a nossa própria fantasia.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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