São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2000
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Entendo que a maioria das etiquetas obedece a condições e exigências de respeito a si e/ao outro. Parando para pensar, encontramos uma razão de ser para elas
Ética

Anna Veronica Mautner Prestando atenção a tudo o que a nossa mente faz num curto período de tempo, veremos que ela executa inúmeras decisões, e isso porque um outro tanto de coisas é feito automaticamente. Senão, decididamente, teríamos que viver em câmara lenta. Imagine só se tivéssemos que decidir se abrimos ou não a boca para tomar água. Ainda bem que o automático funciona. Ainda bem que temos movimentos reflexos, que piscar, andar fazemos sem pensar.
Já, se vamos fazer essas coisas depressa ou devagar, demanda uma centena de pensamentos, pois entram muitas variáveis. Vamos ver se é necessário andar depressa neste lugar, se com o sapato que estamos podemos ou não, pois pode haver ruído.
Andar depressa ou devagar, além de fazer parte de certas etiquetas, engloba funcionalidade. Não é de bom tom entrar correndo numa igreja, num cinema ou num tribunal. O bater do sapato no chão romperia a concentração dos que assistem ou oficiam a missa, o julgamento, a música, a meditação.
Entendo que a maioria das etiquetas obedece a condições e exigências de respeito a si e/ao outro. Parando para pensar, encontramos uma razão de ser para elas. Com isso não quero dizer que não existam etiquetas inúteis. Elas podem ser sobreviventes de funções antigas, mantidas para descriminar classe ou posição social. Uma coisa que me chama a atenção é a persistência com a qual as mulheres de classe alta mantém (é verdade que cada vez menos) o uso do chapéu em casamentos, corridas de cavalo. E como as mulheres nas classes populares também cobrem a cabeça, no caso com lenço, especialmente para tarefas ao ar livre. Nesse caso, acredito que seja uma herança do trabalho no campo, na cozinha e no lavar roupa no rio ou no lago para se proteger do sol.
Um hábito não desaparece imediatamente quando a função desaparece. Pode nesse meio tempo aparecer nova função. Não creio que seja o caso dos chapéus das mulheres. Creio que desde sempre sua função é proteger os penteados da ação devastadora do vento. Nas recepções ao ar livre, casamentos, coquetéis, o chapéu é a salvação. Em vez de penteados elegantes, temos chapéus extravagantes.
E por que não falar de boca cheia? Dizer que é feio ou bonito não é suficiente. Vejamos uma hipótese. Para falar temos que respirar e, se comemos falando, engolimos ar, atrapalhando a digestão. As palavras saem mal, e o outro não entende o que dissemos.
E por que pôr copos diferentes na mesa diante do prato? Imagine se o pobre garçom ou o dono da casa tiver que perguntar, para cada convidado, onde cada um quer a água, a cerveja, o vinho. Se os copos maiores forem para água e refrigerante, os longos para cerveja (para caber a espuma) e os mais curtos para o vinho, temos meio caminho andado.
É só a gente não descartar toda e qualquer etiqueta como frescura. Vamos dar uma espiada no uso da luva? Quanto mais temos antiinflamatórios e antibióticos, menos precisamos nos proteger de contaminação. E ao mesmo tempo mais luva se usa nos hospitais, farmácias e laboratórios. Eu lembro bem que, quando era criança, as mães ainda diziam para os filhos não porem as mãos nos olhos depois de andar de ônibus ou de pegar dinheiro, para evitar a tracoma. Hoje em dia ninguém nem mais sabe o que é tracoma, só os médicos.
Concluo chamando a atenção para a origem da palavra etiqueta: ética pequena. Quando evito que me procurem porque me despedi, mostro consideração com o outro. Quando não falo com boca cheia, respeito a minha respiração e a audição do outro. E assim lanço a minha bandeira em defesa de certas etiquetas. Antes de deixar de usar alguma, verifique se ela não tem alguma função. As regras de etiqueta têm a ver com a ética, com o respeito ao outro e a si próprio.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta)



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