São Paulo, quinta-feira, 10 de agosto de 2006
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alongamento

Gente que estica

Idade, sexo, herança genética, hormônios e "memória" corporal afetam flexibilidade, mas exercícios podem ajudar a manter músculos longos mesmo na terceira idade

Flávio Florido/Folha Imagem
Sylvaine Charrier, que trabalha como contorcionista do circo Plume


AMARÍLIS LAGE
DA REPORTAGEM LOCAL

No centro do picadeiro, a contorcionista parece feita de borracha. Estica de um lado, puxa do outro e faz parte do respeitável público resgatar o velho sonho de fugir com o circo. Mas, sem querer ser estraga-prazeres, é bom avisar: deixe o contorcionismo fora de suas ambições circenses.
A flexibilidade, fundamental nesse tipo de atividade, pode ser aprimorada com exercícios. Mas grande parte da capacidade de esticar o corpo está ligada a componentes genéticos.
"Se você não "escolheu bem" seus pais, esqueça", brinca o médico Cláudio Gil Soares de Araújo, diretor da Clinimex -Clínica de Medicina do Exercício. "Pode ver que muitos desses artistas vêm de famílias com tradição em contorcionismo."
Essa "herança" inclui a titina, conhecida como a "proteína da flexibilidade". Embora todas as pessoas tenham essa proteína nas fibras musculares, uma parte dela é variável, e essas mudanças ajudam a definir se você será mais ou menos maleável, diz Tania Salvini, professora de fisioterapia da Universidade Federal de São Carlos.
Uma das formas de saber em que grupo você se encaixa é um exame conhecido como Flexiteste, que foi desenvolvido por Soares. Composto por 20 movimentos, cada um com uma pontuação que varia de zero a quatro, o exame mede quão flexível alguém é (faça um teste simplificado na pág. 9).
Quem alcança uma pontuação acima de 70 tem hipermobilidade. Isso não é, necessariamente, uma característica boa: a síndrome de hipermobilidade benigna, que leva a um nível de flexibilidade muito alto nas articulações, costuma gerar dores nas extremidades do corpo.
Mesmo em casos menos extremos, a mobilidade excessiva pode ser um problema. "Se um atleta tem frouxidão ligamentar, o risco de ele ter uma entorse no tornozelo enquanto corre é grande. Em casos assim, o ideal é deixar a musculatura do tornozelo dele mais tensa", diz o fisioterapeuta José Luís Pimentel do Rosário, conselheiro do Crefito (Conselho Regional de Fisioterapia e Terapia Ocupacional) de São Paulo.
Além disso, a flexibilidade excessiva também pode afetar o funcionamento de órgãos internos. Uma pesquisa realizada por Soares, da Clinimex, constatou que uma alteração cardíaca conhecida como prolapso (deslocamento) da válvula mitral é mais comum em mulheres com hipermobilidade.
Não por acaso o problema é mais associado a mulheres. De modo geral, elas são muito mais flexíveis que os homens. Essa diferença surge após os sete ou oito anos de idade -até então, meninos e meninas apresentam corpos igualmente maleáveis. Na puberdade, porém, características hormonais levam as mulheres a ter uma mobilidade maior.
Durante a gravidez, os hormônios voltam a atuar, deixando as mulheres ainda mais flexíveis -uma preparação para as exigências do parto.
Por volta dos 40 anos, tanto homens quanto mulheres tendem a perder flexibilidade. O ganho de peso e o sedentarismo contribuem para isso, mas o processo também está ligado à maior rigidez e à menor hidratação do tecido conjuntivo.

Corpo travado
Uma das principais conseqüências da perda de flexibilidade é que os músculos se tornam mais curtos. "A musculatura encurtada deixa os músculos numa posição complicada. Isso cria desgastes nas articulações, e a pessoa precisa usar mais força para fazer as mesmas atividades", diz Rosário.
Além disso, o "endurecimento" pode levar a "compensações" em outras áreas do corpo. O professor de ioga Kalidas Nuyken, proprietário do Surya Espaço de Yoga, em São Paulo, exemplifica isso com o ato de pegar um livro numa estante. "Quem tem o ombro flexível levanta a mão facilmente. Já quem não consegue levantar muito o braço inclina o corpo para trás, para aumentar o alcance da mão, e tende a jogar a lombar para a frente." Resultado: dores nas costas.

Treino
A boa notícia é que, a despeito de sexo, idade ou herança genética, ninguém está inexoravelmente fadado ao grupo daqueles que gemem até para amarrar os cadarços. A flexibilidade é treinável, e os músculos se adaptam aos exercícios de alongamento.
Essa capacidade de ajuste permite, por exemplo, que pessoas de qualquer idade aprendam ioga, afirma Nuyken. "Algumas pessoas podem demorar mais que outras, mas não tem limite de idade."
O processo também ocorre no sentido contrário, explica Salvini, que é especialista em modelos de plasticidade muscular. "Se pararmos o alongamento, os músculos se encurtam novamente."
A "memória" corporal também tem um papel importante nesse vai-e-vem muscular. Quem fez muitos exercícios de alongamento quando jovem terá mais facilidade para recuperar essa flexibilidade.
Isso ajuda a explicar por que é complicado aprender balé ou ginástica olímpica já na fase adulta. Segundo Salvini, como vários movimentos característicos dessas atividades são antifuncionais e não fazem parte de nossas ações normais, os músculos só se adaptam a eles se a atividade for realizada ainda na infância, quando o tecido conjuntivo está no auge de sua elasticidade.
Para manter a flexibilidade alcançada, os exercícios de alongamento devem ser feitos de duas a três vezes por semana. Cada grupo muscular deve ser alongado de quatro a seis vezes, e as posições devem ser mantidas por 30 segundos.
O melhor método? Aquele que dá prazer, responde Rosário. Em seu mestrado, realizado na USP (Universidade de São Paulo), ele comparou o alongamento normal, no qual braços, pernas etc. são esticados separadamente, e o RPG (Reeducação Postural Global), que alonga cadeias musculares. Segundo ele, não houve diferença no ganho de flexibilidade, embora o RPG tenha melhorado a postura dos participantes.
Para o presidente da Sociedade Brasileira de RPG, Oldack Borges de Barros, flexibilidade e postura são aspectos interligados. "Quando há uma deformação da postura, isso já é o reflexo de que ali houve uma perda de flexibilidade articular."
Esse problema, segundo ele, decorre não apenas do sedentarismo mas também da prática de exercícios -se alguém faz um tipo de esporte, tende a perder a flexibilidade nas áreas que não exercita. "Quem só corre, por exemplo, tende a perder flexibilidade na coluna vertebral e nos braços."
A contribuição do alongamento para a prática de esportes também é discutida: músculos longos e flexíveis ajudam muito no desempenho das atividades físicas, mas algumas pesquisas questionam a validade de fazer alongamentos imediatamente antes dos exercícios -há até quem defenda que esse hábito é prejudicial.
Essa, porém, é uma questão ainda nebulosa, diz Salvini. "Dizem que, antes do exercício, o alongamento tem uma atuação nos receptores musculares, o que diminuiria o rendimento. Mas a questão ainda não está resolvida, pois também há trabalhos mostrando o contrário", diz ela, ressaltando que o alongamento após os exercícios não é questionado.
Enquanto essa polêmica não é resolvida, um horário do dia segue sem contra-indicação: a hora do acordar. "Espreguiçar é um alongamento que faz muito bem ao corpo", afirma Barros. "E aprender é fácil: basta observar qualquer gato."


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