São Paulo, quinta-feira, 11 de março de 2004
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foco nele

Conhecimento para quem não pode pagar

ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL

No início de sua carreira de professor, o médico Hélio Shainberg, 46, imaginava espalhar todo o conhecimento que havia adquirido nas melhores escolas de medicina do Brasil, dos EUA e do Canadá. Encontrou alunos desinteressados. Resolveu levar seu conhecimento para quem precisava -e não podia pagar. Durante seis anos, Shainberg desceu e subiu a serra que liga São Paulo a Santos para cuidar de doentes gratuitamente, toda sexta-feira, com chuva ou com sol, com febre e até com uma costela quebrada. Mas sua motivação não era fazer beneficência. Era a forma de distribuir todo o patrimônio de saber que tinha obtido. Distribuiu muito, mas ganhou mais ainda. Tanto que diz ter sido "egoísmo" a sua motivação. Hoje, "aposentou-se" do voluntariado, mas ainda colhe os frutos: mesmo sendo judeu, recentemente recebeu da Igreja católica agradecimento feito por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, "pelos relevantes trabalhos realizados aos mais necessitados". Leia a entrevista abaixo.
 

Folha - Por que atender gratuitamente?
Hélio Shainberg -
Tenho um conhecimento bastante grande e não acho que deveria fornecer esse conhecimento apenas para quem pode pagar. Daí resolvi abrir uma clínica popular em Santos. Saía de casa às 4h da manhã e atendia 100, 150 pacientes por dia. Atendia até quando eu tinha febre ou costela quebrada.

Folha - Era totalmente gratuito?
Shainberg -
De vez em quando atendia alguns pacientes com planos de saúde pequenininhos, que me rendiam R$ 5, R$ 6. Dava até para pagar minha gasolina. Mas 90% eram atendidos de graça. Procurei alguns padres para oferecer meu serviço. Dizia a eles: "Vejam quem necessita de ajuda. Estou montando um consultório, gostaria que mandassem pessoas que têm alergia para lá. Eu darei também os remédios".

Folha - Qual a sua religião?
Shainberg -
Eu sou judeu e, em geral, judeus são bem de vida. Queria fazer o bem, não importava o credo religioso. Encontrei nas igrejas [católicas] a possibilidade de, com meu conhecimento, beneficiar pessoas de baixa renda.

Folha - Por que Santos?
Shainberg -
Eu passo pouco tempo com meus filhos e imaginei que poderia ter mais tempo para minha família. Achei que poderíamos descer [a serra] na quinta, eu atenderia na sexta, e voltaríamos para São Paulo no sábado ou no domingo de manhã. Deu mais ou menos certo, porque minha mulher não podia faltar todas as sextas no trabalho.

Folha - Como foi a sua formação médica?
Shainberg -
Fiz cursos de pós-graduação em Toronto [Canadá] e em Boston [EUA] com os melhores médicos alergistas do mundo.

Folha - O senhor já deu aula?
Shainberg -
Sim. Mas dava aula e olhava para aqueles rapazes com cara de que não queriam aprender nada. Ninguém fazia perguntas, não tinham interesse. Pensei: "Tenho tanto conhecimento, e ninguém quer aprender!".

Folha - Foi quando pensou em atender gratuitamente?
Shainberg -
Foi. A medicina é criação. Eu precisava criar. Meus pais são ricos e me deram a chance de fazer o curso que eu quis. Esse é meu patrimônio.

Folha - O senhor define o trabalho que fez em Santos como beneficente?
Shainberg -
Meus anos de trabalho lá foram de criação, de diagnóstico. Não falo em beneficência, porque não pensei nisso. Pensei em espalhar meu conhecimento para quem não podia me pagar. Faço beneficência com crianças na AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente] e contribuo com dinheiro para a assistência social do hospital Albert Einstein. Isso é ser beneficente. Em Santos, recebi mais dádivas do que dei!

Folha - Então foi egoísmo?
Shainberg -
Ganhei mais do que dei. Treinei meu raciocínio, que tinha de ser muito rápido, mas não podia perder a qualidade.

Folha - Por que parou de descer a serra?
Shainberg -
Sabe aquela sensação de papel cumprido? Senti que era o momento de parar.

Folha - O que o senhor guarda de bom, tirando os conhecimentos que obteve?
Shainberg -
Houve uma criança com um diagnóstico difícil, que estava muito mal, e a mãe resolveu levá-la a mim. Melhorou muito, mas, infelizmente, faleceu em 2002, em um acidente de carro. Não faz muito tempo sua mãe veio até aqui. Trouxe uma fotografia do menino para eu ver, como se estivesse me abraçando. Ela quis me dizer que estava muito agradecida pela qualidade de vida que dei a ele quando ainda estava vivo.

Folha - Então, não era só "egoísmo", gestos como esse também o motivavam?
Shainberg -
Exatamente. É receber do paciente o melhor pedaço de toicinho que pôde comprar embrulhado em papel de pão. Uma vez recebi uma garrafa de uísque, ele deve ter guardado o dinheirinho o ano todo para comprar isso "pro doutor". Isso é fabuloso.

Folha - O senhor acredita que todos os médicos deveriam fazer o mesmo?
Shainberg -
Se cada um pudesse fazer um pouquinho disso já seria bom. Acho que todos deveriam parar de enxergar os pacientes com olhos de "quanto dinheiro vou ganhar". Se pensar assim, o médico deve largar a medicina. Vai contra o preceito médico. Mas nada impede que seja uma profissão em que se ganhe dinheiro. Ele vem naturalmente.


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