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foco nele
Conhecimento para quem não pode pagar
ANA PAULA DE OLIVEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
No início de sua carreira de professor, o
médico Hélio Shainberg, 46, imaginava
espalhar todo o conhecimento que havia
adquirido nas melhores escolas de medicina do Brasil, dos EUA e do Canadá. Encontrou alunos desinteressados. Resolveu levar seu conhecimento para quem
precisava -e não podia pagar. Durante
seis anos, Shainberg desceu e subiu a serra que liga São Paulo a Santos para cuidar
de doentes gratuitamente, toda sexta-feira, com chuva ou com sol, com febre e até
com uma costela quebrada. Mas sua motivação não era fazer beneficência. Era a
forma de distribuir todo o patrimônio de
saber que tinha obtido. Distribuiu muito,
mas ganhou mais ainda. Tanto que diz
ter sido "egoísmo" a sua motivação. Hoje, "aposentou-se" do voluntariado, mas
ainda colhe os frutos: mesmo sendo judeu, recentemente recebeu da Igreja católica agradecimento feito por dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de
São Paulo, "pelos relevantes trabalhos
realizados aos mais necessitados". Leia a
entrevista abaixo.
Folha - Por que atender gratuitamente?
Hélio Shainberg - Tenho um conhecimento bastante grande e não acho que
deveria fornecer esse conhecimento apenas para quem pode pagar. Daí resolvi
abrir uma clínica popular em Santos. Saía
de casa às 4h da manhã e atendia 100, 150
pacientes por dia. Atendia até quando eu
tinha febre ou costela quebrada.
Folha - Era totalmente gratuito?
Shainberg - De vez em quando atendia
alguns pacientes com planos de saúde
pequenininhos, que me rendiam R$ 5, R$
6. Dava até para pagar minha gasolina.
Mas 90% eram atendidos de graça. Procurei alguns padres para oferecer meu
serviço. Dizia a eles: "Vejam quem necessita de ajuda. Estou montando um consultório, gostaria que mandassem pessoas que têm alergia para lá. Eu darei
também os remédios".
Folha - Qual a sua religião?
Shainberg - Eu sou judeu e, em geral, judeus são bem de vida. Queria fazer o
bem, não importava o credo religioso.
Encontrei nas igrejas [católicas] a possibilidade de, com meu conhecimento, beneficiar pessoas de baixa renda.
Folha - Por que Santos?
Shainberg - Eu passo pouco tempo com
meus filhos e imaginei que poderia ter
mais tempo para minha família. Achei
que poderíamos descer [a serra] na quinta, eu atenderia na sexta, e voltaríamos
para São Paulo no sábado ou no domingo de manhã. Deu mais ou menos certo,
porque minha mulher não podia faltar
todas as sextas no trabalho.
Folha - Como foi a sua formação médica?
Shainberg - Fiz cursos de pós-graduação em Toronto [Canadá] e em Boston
[EUA] com os melhores médicos alergistas do mundo.
Folha - O senhor já deu aula?
Shainberg - Sim. Mas dava aula e olhava
para aqueles rapazes com cara de que
não queriam aprender nada. Ninguém
fazia perguntas, não tinham interesse.
Pensei: "Tenho tanto conhecimento, e
ninguém quer aprender!".
Folha - Foi quando pensou em atender
gratuitamente?
Shainberg - Foi. A medicina é criação.
Eu precisava criar. Meus pais são ricos e
me deram a chance de fazer o curso que
eu quis. Esse é meu patrimônio.
Folha - O senhor define o trabalho que
fez em Santos como beneficente?
Shainberg - Meus anos de trabalho lá foram de criação, de diagnóstico. Não falo
em beneficência, porque não pensei nisso. Pensei em espalhar meu conhecimento para quem não podia me pagar. Faço
beneficência com crianças na AACD [Associação de Assistência à Criança Deficiente] e contribuo com dinheiro para a
assistência social do hospital Albert Einstein. Isso é ser beneficente. Em Santos, recebi mais dádivas do que dei!
Folha - Então foi egoísmo?
Shainberg - Ganhei mais do que dei.
Treinei meu raciocínio, que tinha de ser
muito rápido, mas não podia perder a
qualidade.
Folha - Por que parou de descer a serra?
Shainberg - Sabe aquela sensação de papel cumprido? Senti que era o momento
de parar.
Folha - O que o senhor guarda de bom, tirando os conhecimentos que obteve?
Shainberg - Houve uma criança com
um diagnóstico difícil, que estava muito
mal, e a mãe resolveu levá-la a mim. Melhorou muito, mas, infelizmente, faleceu
em 2002, em um acidente de carro. Não
faz muito tempo sua mãe veio até aqui.
Trouxe uma fotografia do menino para
eu ver, como se estivesse me abraçando.
Ela quis me dizer que estava muito agradecida pela qualidade de vida que dei a
ele quando ainda estava vivo.
Folha - Então, não era só "egoísmo", gestos como esse também o motivavam?
Shainberg - Exatamente. É receber do
paciente o melhor pedaço de toicinho
que pôde comprar embrulhado em papel
de pão. Uma vez recebi uma garrafa de
uísque, ele deve ter guardado o dinheirinho o ano todo para comprar isso "pro
doutor". Isso é fabuloso.
Folha - O senhor acredita que todos os
médicos deveriam fazer o mesmo?
Shainberg - Se cada um pudesse fazer
um pouquinho disso já seria bom. Acho
que todos deveriam parar de enxergar os
pacientes com olhos de "quanto dinheiro
vou ganhar". Se pensar assim, o médico
deve largar a medicina. Vai contra o preceito médico. Mas nada impede que seja
uma profissão em que se ganhe dinheiro.
Ele vem naturalmente.
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