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A amizade que acaba é porque nunca começou
Ciete Silvério/Folha Imagem
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A amizade sólida de 15 anos entre Mara Lucia Buso (esq.) e Rosa Ramos começou na quadra de vôlei |
Amigo é o que fala o que o outro não quer ouvir; na relação sólida,
o tempo não afasta, adia; pesquisadores tentam explicar a amizade
IARA BIDERMAN
FREE-LANCE PARA A FOLHA
A mizades, paixões, ternura: temas que, à
primeira vista, parecem ser de interesse
apenas da vida privada, assunto particular, já
atraem pesquisadores de várias ciências, das
humanas às médicas. No Brasil, o Grupo de
Pesquisa em Antropologia e Sociologia da
Emoção (Grem), especialização ainda pouco
conhecida, estuda os mecanismos que sustentam fenômenos considerados subjetivos como as amizades e o modo como estas moldam
a sociedade e são moldadas por ela.
"Ao ser amigo, eu deixo de ser singular, tenho regras, mesmo que implícitas, de conduta, de comportamento, de afeto. Amizades fazem com que as pessoas consigam administrar um tipo de vida, ter projetos como indivíduo, atuar e cumprir seu destino na sociedade", diz o antropólogo Mauro Koury, professor da Universidade Federal da Paraíba e
coordenador do Grem.
Amizade aqui é entendida como a duradoura, a sólida, ressalva que se faz ainda mais necessária por causa da banalização da palavra
-o brasileiro chama de amigo o garçom, o
flanelinha e até o desconhecido a quem pede
uma informação na rua. Mas as amizades longas são as que contam.
"Amizade que acaba é porque nunca começou. Se não for algo que sai do pragmático, do
imediato, não é verdadeiro", diz o filósofo e
colunista da Folha Mario Sergio Cortella.
Esse "ciclo longo" de relacionamento, segundo denomina o antropólogo José Guilherme Magnani, do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, não tem
como base o trabalho ou lealdades específicas. A disponibilidade de trocas a longo prazo é o que sustenta as parcerias no decorrer
do tempo, diz o antropólogo.
O que faz surgir aquela amizade "para
sempre" está além das explicações da razão.
"Não é optativo. Todos tropeçam em pessoas
com quem teriam esse tipo de relacionamento, mas podem reconhecê-las ou não naquele
momento", diz o psicanalista Armando Colognese Jr., supervisor do curso de formação
em psicanálise do Instituto Sedes Sapientae,
de São Paulo.
Embora não se conheça por completo a química da amizade, Colognese acredita que ela
não acontece, pelo menos na forma duradoura e produtiva, com pessoas muito iguais entre
si. "A amizade requer aquele raro ponto médio entre semelhança e diferença", escreveu o
filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882).
Outra característica que diferencia as amizades de longa data é a possibilidade de confronto sem ruptura. "Se você me importa, eu me
incomodo com você. Incomoda-me se você
está certo, errado, o que você fala e até a forma
de você se vestir", diz Cortella.
Amigo é quem pode falar aquilo que não
gostamos de ouvir. O administrador de bufê
Walter Pires Jr., 46, viveu essa situação com a
fonoaudióloga Gláucia Domingues, 45, sua
amiga há mais de 30 anos. Pires conta que, certa vez, disse à Gláucia que discordava do caminho que ela estava tomando no campo sentimental. A resistência da fonoaudióloga a ouvir
os conselhos do amigo o levou a encerrar o assunto, mas não sem antes avisar: "Tudo bem,
mas não peça mais a minha ajuda". Pires acredita que essa frase tenha feito "cair a ficha" e,
passado o tempo regulamentar de cicatrização
de mágoas, a amizade voltou a ser o que era.
A possibilidade de superar mágoas também
é pressuposto e resultado de amizades duradouras, diz Colognese. Requer maturidade, é
óbvio, e também uma das maiores virtudes do
ser humano, segundo o psicanalista, que é a
capacidade de reconhecer os próprios limites
e saber onde procurar o que falta -e a amizade é um espaço privilegiado para essa busca.
As amizades longas são mais raras porque,
mesmo que surgidas num golpe do acaso, dão
muito mais trabalho. "Amigo pede dinheiro
emprestado, bebe, dá um trabalhão, mas você
sabe que um dia estará carregando a alça do
caixão dele e chorando sua partida sem saber
bem o motivo", diz Cortella. É um esforço
mais de compreensão e aceitação do diferente
do que de convivência física. "Nem é preciso
encontrar-se sistematicamente, há um pressuposto de que a amizade exista", diz o antropólogo Mangnani. Na amizade sólida, o tempo é
uma contingência. Não afasta, apenas adia.
Ao lado da afinidade e do respeito, a criação
de certos rituais reaviva o pacto de confiança
ou lealdade que, para Koury, é elemento fundamental da amizade longa. Ele diz que, em
certas sociedades, como as indígenas, os rituais são muito precisos, com regras predeterminadas. Na sociedade ocidental, os rituais
são criados um pouco aleatoriamente.
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