São Paulo, quinta-feira, 12 de maio de 2005 |
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Outras idéias Anna Veronica Mautner A pele e os cueiros
Todos sabem que
até o lobo mau
sempre soube
que olho é para
olhar, nariz é para cheirar, orelha é para ouvir e boca é para falar e comer. Mas sempre esquecemos que a pele é para sentir,
pois é ali que reside o tato. A
pele é o nosso maior órgão
dos sentidos -bem do tamanho que somos.
Tato é contato. Para percebermos nosso tamanho, largura, altura, envergadura ou força, temos que sentir. A imagem no espelho ou numa foto ilustra, mas não cria sensação. O órgão do tato vai se desenvolvendo desde o nascimento, no contato com a mãe, a fralda, a camiseta, o sapatinho, o colchão, o travesseiro. É nesses contatos que formamos a imagem de nós mesmos. E é a partir dessas imagens que formulamos nossas primeiras vontades -de alcançar, de conseguir, de empurrar, de ter força. Uma criança, deitadinha num pano dependurado no pescoço de uma mulher, como se fosse uma pequena rede, está estimulando, sem parar, o corpo todo. Ela sente o pano nas costas e o corpo da mãe na parte da frente. Isso vale também para a criança amarrada às costas do adulto. Cada roca com seu fuso, cada povo com seus usos. Hoje vestimos as crianças com roupas bem largas, sem nada a lhes impedir os movimentos. O bebê fica deitado com menos da metade de seu órgão do tato estimulada. Suas tentativas de pegar, alcançar e empurrar possivelmente lhe trarão mais desacertos do que acertos porque ele não sabe seu tamanho. Ele é livre, mas não é destro. Ao nenê livre falta o contato que lhe formaria no futuro a imagem corporal. Nós, urbanos, modernos, ocidentais, atribuindo enorme importância à liberdade, tendemos a transferir ao recém-nascido a nossa ânsia de liberdade. Eu não posso provar que essa nossa maneira de lidar com os bebês seja a causa direta de possíveis dificuldades que, quando crescidos, vamos ter que enfrentar. Posso usar a minha vivência com adultos jovens de hoje e compará-los aos de 20 anos atrás. Não é nenhuma observação científica, mas a freqüência e a intensidade me permitem sugerir algumas hipóteses. Ouso propor que deveriam fazer parte do currículo escolar exercícios para a construção de imagem corporal. Para dirigir minha vida, preciso ter uma noção clara daquilo de que sou capaz. Para tanto, uma imagem o mais próxima possível do meu tamanho e de minha destreza é indispensável. Uma imagem corporal afastada da realidade nos leva a cometer muitos erros. Quando se erra muito na infância, é possível desenvolver fantasias de obstáculos e azares imensos. Timidez, medo de errar e medo do fracasso são transferidos rapidamente para o escopo da capacidade intelectual. O menino ruim de bola frustra-se, esquiva-se dos jogos e pode mergulhar nos livros -ou desistir dos jogos e dos livros. E, mais tarde, terá medo de dançar e poderá morrer de medo do sexo oposto -ou tornar-se um Don Juan para compensar. Tivesse eu mais espaço, daria mais exemplos, mas vou resumir, dizendo que o órgão do tato, quando mal estimulado, gera problemas não só motores mas também psicológicos e intelectuais. Em nome da liberdade, abolimos o cueiro dos recém-nascidos e vamos formatando o corpo dos bebês pelo contato intermitente das roupas folgadas que dão liberdade, mas tiram ou protelam a sensação de ser. Desenvolvimento harmônico pede estimulação constante do tato. Talvez a hora da liberdade seja quando pudermos sentir que existimos e soubermos o que queremos. A volta do cueiro? Provavelmente impossível. Que se invente algo melhor sem suprimir o contato. ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) @ - amautner@uol.com.br Próximo Texto: Pergunte aqui Índice |
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