São Paulo, quinta-feira, 12 de junho de 2008
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OUTRAS IDÉIAS

Dulce Critelli


Origens

Duas notícias ocuparam, paralelas, os jornais da última semana: as discussões jurídicas e científicas sobre as células-tronco e as informações sobre uma tribo indígena no Acre, incólume, entre cerca de outras sessenta nas mesmas condições.
Vistas uma ao lado da outra, essas notícias provocam estranhamento. A mídia conseguiu unir aquilo que a lógica a respeito da trajetória da civilização separa. Eu me senti estirada entre dois pólos extremos da história humana: o máximo do refinamento científico-cultural contrastando e convivendo com a primitividade da existência humana.
Nas fotos dos indígenas, chamou minha atenção o modo como eles se relacionam com a natureza. Suas ocas pareciam propositalmente erguidas entre as árvores, sem desmontar o ambiente natural nem provocar desmatamentos e desequilíbrios fatais. Disso estamos muito longe!
É difícil creditar aos índios uma postura ético-ecológica "politicamente correta", tal como a buscamos hoje, sobretudo porque eles pouco se distinguem da natureza de tão misturados que estão com ela. E nós, neste outro e atual extremo da civilização, se sabemos bem de tal distinção, sobra-nos quase nenhuma consciência de que também fazemos parte dela. Plantas e animais não vivem na natureza, eles são natureza.
As comunidades indígenas também conhecem bem de perto esse pertencimento ao mundo natural.
No entanto, faz parte do chamado desenvolvimento civilizatório uma contínua desnaturalização. Parte de nós -nosso corpo- é também natureza, mas a nossa condição humana implicou um progressivo desgarramento dela.
O processo do desenvolvimento civilizatório coincidiu com a possibilidade de um afastamento da natureza e, portanto, da sua recriação. Podemos, hoje, observar a natureza, compreendê-la, interferir e até alterar seu curso original.
Arrancamos os pés da Terra e os fincamos na Lua. Podemos desviar o leito dos rios, dessalgar o mar, promover explosões atômicas, cultivar transgênicos, fertilizar óvulos em laboratório, clonar seres vivos.
Inclusive, pela manipulação das células-tronco, parece que podemos reformar nossa natureza e nossa origem. E é neste processo de recriação e, portanto, de evasão do mundo natural que os índios do caso não adentraram.
Mas, mesmo que distantes no eixo da civilização, indígenas e células-tronco se aproximam, de certo modo, no que diz respeito à nossa origem. Enquanto os índios nos remontam à origem desta nação, as células-tronco nos remetem à origem da vida humana.
Além do mais, o palco de ambas é o mesmo: a natureza.


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br



Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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