|
Próximo Texto | Índice
OUTRAS IDÉIAS
Dulce Critelli
Origens
Duas notícias ocuparam, paralelas, os
jornais da última semana: as discussões
jurídicas e científicas sobre as
células-tronco e as informações sobre uma tribo indígena
no Acre, incólume, entre cerca
de outras sessenta nas mesmas
condições.
Vistas uma ao lado da outra,
essas notícias provocam estranhamento. A mídia conseguiu
unir aquilo que a lógica a respeito da trajetória da civilização separa.
Eu me senti estirada entre
dois pólos extremos da história
humana: o máximo do refinamento científico-cultural contrastando e convivendo com a
primitividade da existência
humana.
Nas fotos dos indígenas, chamou minha atenção o modo como eles se relacionam com a
natureza. Suas ocas pareciam
propositalmente erguidas entre as árvores, sem desmontar o
ambiente natural nem provocar desmatamentos e desequilíbrios fatais. Disso estamos
muito longe!
É difícil creditar aos índios
uma postura ético-ecológica
"politicamente correta", tal como a buscamos hoje, sobretudo
porque eles pouco se distinguem da natureza de tão misturados que estão com ela.
E nós, neste outro e atual extremo da civilização, se sabemos bem de tal distinção, sobra-nos quase nenhuma consciência de que também fazemos parte dela.
Plantas e animais não vivem
na natureza, eles são natureza.
As comunidades indígenas
também conhecem bem de
perto esse pertencimento ao
mundo natural.
No entanto, faz parte do chamado desenvolvimento civilizatório uma contínua desnaturalização. Parte de nós -nosso
corpo- é também natureza,
mas a nossa condição humana
implicou um progressivo desgarramento dela.
O processo do desenvolvimento civilizatório coincidiu
com a possibilidade de um afastamento da natureza e, portanto, da sua recriação. Podemos,
hoje, observar a natureza, compreendê-la, interferir e até alterar seu curso original.
Arrancamos os pés da Terra e
os fincamos na Lua. Podemos
desviar o leito dos rios, dessalgar o mar, promover explosões
atômicas, cultivar transgênicos, fertilizar óvulos em laboratório, clonar seres vivos.
Inclusive, pela manipulação
das células-tronco, parece que
podemos reformar nossa natureza e nossa origem. E é neste
processo de recriação e, portanto, de evasão do mundo natural que os índios do caso não
adentraram.
Mas, mesmo que distantes
no eixo da civilização, indígenas e células-tronco se aproximam, de certo modo, no que
diz respeito à nossa origem.
Enquanto os índios nos remontam à origem desta nação,
as células-tronco nos remetem
à origem da vida humana.
Além do mais, o palco de ambas é o mesmo: a natureza.
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho
Próximo Texto: Pergunte aqui Índice
|