|
Próximo Texto | Índice
Outras idéias - Dulce Critelli
O tempo e o encantamento
Quando alguma coisa
nos encanta, só de
começo ela parece
ser, ela mesma, uma
coisa encantada. Mas, aos
poucos, ela vai se desgarrando, e o que resta é o encantamento puro.
O encantamento sobra na
alma. E, enquanto se demora
na lembrança, vai ganhando
vida própria e nos transformando por dentro. De vez em
quando, ressurge na forma de
um sorriso, de um suspiro, daquilo que nos faz sentir pacificados. Mais do que um estado
de espírito, o encantamento é
um estado de ser.
O último encantamento me
pegou há umas três semanas.
Fui a um show de palhaços
russos, que não fizeram palhaçada, dessas que a gente está
acostumada a ver, com torta
na cara, tombos, gritaria. Tudo o que fizeram tinha muito
silêncio. Tanto que mexeu na
minha sensação do tempo,
que se suspendia e demorava
para voltar.
Acho que o encantamento
começou com uma cena de sonho. O espaço do palco inundado por infindáveis e voadoras bolhas de sabão de todos
os tamanhos. Três palhaços
(de nariz adunco encarnado e
não de bolinha vermelha e lustrosa), o do meio segurando
uma rede de caçar borboletas
e os outros tocando uma pequeníssima harmônica, dublaram uma canção que parecia cair do céu.
Pouquíssimos gestos, quase
movimento nenhum. Talvez
isso tenha feito parecer que
era uma canção demorada.
Foi ali que a minha expectativa de ver a próxima cena desmoronou. Foi assim que me
prenderam e me tornaram
disponível para o encanto.
Mas teve também o que saía
do palco e nos atingia: água,
vento, neve. E o principal, a
teia gigante que corria sobre
nós e nos obrigava a tirá-la de
nossos corpos e cabeças, espalhando-a para os outros, enredando-nos uns nos outros e
nos tornando um só. Juntos.
Referidos e entrelaçados. Platéia e atores. Também nós palhaços.
E, por fim, as bolas imensas,
como nunca vi. Verdes, vermelhas, azuis, amarelas e
brancas, para caber nelas todas as outras cores que não tinham vindo em si mesmas.
Elas nos fizeram crianças que
jogavam as bolas sem outro
fim que o de fazê-las correr e
dançar pelo espaço.
Foi assim que o espetáculo
terminou sem palmas, ovações, assobios e pedidos de
bis. Foi assim que os palhaços
nos repassaram a sua alma.
Há quanto tempo eu não
brincava? Pelo menos desse
jeito, sem visar resultados?
Não sei...
O show se foi, e eu fiquei
mudada (como compete a todo bom encantamento),
reencontrando, em mim, pedaços que o tempo tinha escondido. Fiquei querendo
que o tempo que costuma ser
do trabalho, do medo, das
obrigações da sobrevivência e
do sucesso, da poupança para
a velhice, do corpo perfeito...
fosse só o do meu encantamento e permanecesse demorado.
[...]
O ENCANTAMENTO SOBRA NA ALMA E, ENQUANTO SE DEMORA NA LEMBRANÇA, VAI NOS TRANSFORMANDO POR DENTRO
DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e
professora de filosofia da PUC-SP, é autora
de "Educação e Dominação Cultural" e
"Analítica de Sentido" e coordenadora do
Existentia -Centro de Orientação e Estudos da
Condição Humana
dulcecritelli@existentia.com.br
Próximo Texto: Correio Índice
|