São Paulo, quinta-feira, 12 de julho de 2007
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Outras idéias - Dulce Critelli

O tempo e o encantamento

Quando alguma coisa nos encanta, só de começo ela parece ser, ela mesma, uma coisa encantada. Mas, aos poucos, ela vai se desgarrando, e o que resta é o encantamento puro.
O encantamento sobra na alma. E, enquanto se demora na lembrança, vai ganhando vida própria e nos transformando por dentro. De vez em quando, ressurge na forma de um sorriso, de um suspiro, daquilo que nos faz sentir pacificados. Mais do que um estado de espírito, o encantamento é um estado de ser.
O último encantamento me pegou há umas três semanas. Fui a um show de palhaços russos, que não fizeram palhaçada, dessas que a gente está acostumada a ver, com torta na cara, tombos, gritaria. Tudo o que fizeram tinha muito silêncio. Tanto que mexeu na minha sensação do tempo, que se suspendia e demorava para voltar.
Acho que o encantamento começou com uma cena de sonho. O espaço do palco inundado por infindáveis e voadoras bolhas de sabão de todos os tamanhos. Três palhaços (de nariz adunco encarnado e não de bolinha vermelha e lustrosa), o do meio segurando uma rede de caçar borboletas e os outros tocando uma pequeníssima harmônica, dublaram uma canção que parecia cair do céu.
Pouquíssimos gestos, quase movimento nenhum. Talvez isso tenha feito parecer que era uma canção demorada. Foi ali que a minha expectativa de ver a próxima cena desmoronou. Foi assim que me prenderam e me tornaram disponível para o encanto.
Mas teve também o que saía do palco e nos atingia: água, vento, neve. E o principal, a teia gigante que corria sobre nós e nos obrigava a tirá-la de nossos corpos e cabeças, espalhando-a para os outros, enredando-nos uns nos outros e nos tornando um só. Juntos. Referidos e entrelaçados. Platéia e atores. Também nós palhaços.
E, por fim, as bolas imensas, como nunca vi. Verdes, vermelhas, azuis, amarelas e brancas, para caber nelas todas as outras cores que não tinham vindo em si mesmas. Elas nos fizeram crianças que jogavam as bolas sem outro fim que o de fazê-las correr e dançar pelo espaço.
Foi assim que o espetáculo terminou sem palmas, ovações, assobios e pedidos de bis. Foi assim que os palhaços nos repassaram a sua alma. Há quanto tempo eu não brincava? Pelo menos desse jeito, sem visar resultados? Não sei...
O show se foi, e eu fiquei mudada (como compete a todo bom encantamento), reencontrando, em mim, pedaços que o tempo tinha escondido. Fiquei querendo que o tempo que costuma ser do trabalho, do medo, das obrigações da sobrevivência e do sucesso, da poupança para a velhice, do corpo perfeito... fosse só o do meu encantamento e permanecesse demorado.

[...]
O ENCANTAMENTO SOBRA NA ALMA E, ENQUANTO SE DEMORA NA LEMBRANÇA, VAI NOS TRANSFORMANDO POR DENTRO


DULCE CRITELLI , terapeuta existencial e professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia -Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana

dulcecritelli@existentia.com.br


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