São Paulo, quinta-feira, 13 de setembro de 2007
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neurociência

Suzana Herculano-Houzel

Dormindo nas nuvens

Cá estou eu, mais uma vez, enfiada em um avião rumo aos EUA para cuidar do meu trabalho sobre quantos neurônios são necessários para construir o cérebro de macacos. Macaca velha que sou de viagens longas, depois de sete anos morando fora, aproveitei a facilidade da compra de passagens pela internet para garantir o lugar onde aprendi que é mais fácil dormir no avião: a janela.
Dormir nas nuvens requer lidar com a combinação desfavorável de espaço exíguo, ansiedade, tempo insuficiente e pessoas querendo que você se levante para deixá-las ir ao banheiro. Como se isso não bastasse, acabo de atinar que a tarefa é ainda mais complicada devido a uma das peculiaridades do sono: o período de sono REM -com os movimentos rápidos dos olhos que lhe dão o nome em inglês ("rapid eye movement") e os sonhos vívidos- que se instala a cada 90 minutos, mais ou menos, de sono.
O problema do sono REM para quem viaja de avião -e não pode pagar a classe executiva, claro- é que, nesse período, o cérebro, para evitar que o corpo obedeça às ordens sonhadas e encene cada uma delas, bloqueia todos os neurônios motores, que comandam as contrações musculares. O resultado é conhecido como paralisia do sono: a total flacidez muscular, que, em nossas camas, faz o corpo relaxar completamente e garante a segurança tanto de quem sonha quanto de quem dorme ao lado -e, no avião, faz a cabeça cair toda vez que se começa a sonhar. Dormir no avião é uma forma de autotortura em que o próprio sono, devido à posição inadequada do corpo, nos faz acordar.
Daí o valor daquele acessório curioso, o travesseiro em forma de coleira que os americanos gostam de usar ao redor do pescoço, que impede a cabeça de tombar de lado. Muito útil, por sinal, para crianças em viagens de carro. Eu, no entanto, prefiro me resolver com a janela. Aprendi que um casaco dobrado por baixo do travesseiro consegue segurá-lo no lugar apoiado contra a janela e que, se você conseguir se entortar na cadeira e tiver as pernas um pouquinho flexíveis, é possível apoiar as pontas dos pés no braço do assento da frente, entre a janela e a poltrona, de modo que as pernas travem sob o próprio peso quando paralisadas pelo sono REM.
Acordo para o café-da-manhã e vejo que minha estratégia funcionou, porque consegui ao menos um longo sonho. E, quando ela não funciona, resta no mínimo uma vantagem em sentar ao lado da janela: o privilégio de ver a cidade maravilhosa do céu!


SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva)
suzanahh@folhasp.com.br

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Dormir no avião é uma autotortura em que o próprio sono, pela posição ruim do corpo, nos faz acordar



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