São Paulo, terça-feira, 13 de setembro de 2011
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OUTRAS IDEIAS

ANNA VERONICA MAUTNER amautner@uol.com.br

Arqueologia do cotidiano


O plástico nos tirou o prazer de espremer a pasta de dentes até o fim. E o desperdício, agora, é muito maior

ARQUEÓLOGO é quem traz à tona o que está enterrado, assim como o psicanalista pretende fazer com a mente. Como tal, quero mostrar como a modernidade vem roubando o espaço que mantém em bom nível nossa autoestima.
No cotidiano, a repetição infindável de certos atos e fatos afasta a nossa atenção e nos torna insensíveis a eles.
Nem vou enumerar todas as coisas que fazemos sem que registremos nem um pensamento sequer a respeito delas. Criamos rituais e tiques para desviar a atenção, para não acompanhar nossos atos. Como se diz: passamos boa parte da vida no automático.
Assim é, a não ser quando a veneziana emperra, o chinelo está fora do lugar, não sai água da torneira ou não achamos a chave. Diante desses imprevistos, focalizamos o fato, pensamos, indagamos.
Ficamos presentes. Se fizéssemos um esforço de presença a cada gesto que deixamos no automático, a vida mental seria muito lenta.
Como psicóloga, gosto de questionar justamente aquilo que passa despercebido. Às vezes, a desatenção é por não querermos perceber (porque não seria agradável ou porque ficaria sem resposta).
Os jeitos de fazer muitas vezes são individuais e outras, herança de família.
Lembro-me agora do tempo em que a pasta de dentes estava numa bisnaga de material metálico. Nós íamos enrolando conforme usávamos o produto, até esvaziar.
Sem qualquer aviso, a bisnaga passou a ser feita de plástico. Não enrola mais. O desperdício é maior e temos de nos acostumar a esta nova era, a da abundância.
Havia orgulho familiar em ostentar, na pia, bisnagas meticulosamente enroladas. O plástico nos tirou o prazer de espremer a pasta de dentes com maior ou menor maestria. Que pena!
E as panelas areadas, que eram colocadas nos muros para secar e, ao mesmo tempo, exibir quão prendadas eram as donas de casa?
No começo, era com areia mesmo que se dava o brilho.Depois veio o sapólio e, agora, pobres de nós, perdemos o prazer de mostrar como sabemos dar brilho. O aço inoxidável já é brilhante.
A modernidade está tirando uma chance após outra de um autoaperfeiçoamento com o qual mantínhamos a nossa autoestima.
Algumas publicidades ainda recorrem a esse passado enterrado, mas não tão longínquo: o branco mais branco, as mil e uma utilidades.
Desenterrando memórias, percebo quantas chances o cotidiano nos dava de termos orgulho de nós mesmos.
Cada dia mais, o que nos resta é comprar e ter condições de fazê-lo. Consumir.
É pouco. É pobre.
Precisamos de melhores lugares para nos espelharmos.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) e "Educação ou o quê?" (Summus).



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