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Rosely Sayão
De geração em geração
Quem tiver a chance
de observar a hora
do recreio de uma
escola em que os
alunos levam o lanche de casa
perceberá um fato bem interessante: as merendas das
crianças de famílias diferentes são muito parecidas e variam apenas de um dia para o
outro. Se considerarmos as
roupas, constataremos o
mesmo fenômeno: elas se
vestem de modo muito semelhante. O mesmo vale
para cortes de cabelo, músicas que sabem cantar, histórias que conhecem e tipo de
linguagem que usam.
Numa época em que a mídia tem tanta força, não são
estranhas tais ocorrências.
Mas elas nos permitem ir
além e construir conjecturas sobre o processo por que
passa a cultura familiar: parece que ela vai se esvaindo
e perdendo sua força.
Hoje é legítimo se perguntar o que diferencia os
integrantes -sobretudo os
mais novos- de famílias
com sobrenomes diferentes. Quais as diferenças entre fazer parte dessa ou daquela família? Quais as características de uma família
e de seus costumes em relação às outras, segundo a
ótica dos filhos? Quais os
elos -além dos de parentesco- entre um
grupo familiar e suas
famílias de origem?
A família, sistema social responsável por
transmitir a
seus membros a primeira matriz de identidade e de pertencimento, parece que passou a
acreditar que tal transmissão
ocorre por osmose. A história
familiar -sua memória, sua organização e seu patrimônio cultural- tem sido relegada ao esquecimento por fundadores de
novas famílias. Por que será?
Uma hipótese possível é que,
em um mundo admiravelmente novo a cada dia, as tradições
familiares (talvez se possa dizer
o mesmo de qualquer tradição),
quando não são simplesmente
esquecidas, são consideradas
ultrapassadas, autoritárias,
rançosas. Perderam mais do
que o valor: perderam o lugar.
Outra hipótese é que, sendo a
família um local de grandes
conflitos, o melhor a fazer seria
tentar colocar o passado entre
parênteses para criar uma nova
família. Seria uma tentativa de
começar do zero, como gosta de
dizer um amigo, para tentar
anular antigos problemas.
O fato é que os fundadores
das novas famílias quase não
encontram motivos para repetir e transmitir a seus filhos as
receitas tradicionais, os ritos
das férias ou dos fins de semana, as rotinas de organização,
os costumes na relação com parentes e amigos, os valores
construídos por gerações. Afinal, por que passar uma manhã
toda de domingo preparando
um almoço familiar tradicional
se é bem mais simples ir a um
restaurante, pedir uma refeição
entregue em domicílio ou comprar semipronto? Por que recontar aos filhos histórias que
habitaram a própria infância se
os tempos são tão diferentes e
as crianças também? Por que
narrar as peripécias de parentes que os mais novos não conhecem? Por que levar os filhos
a participar de rituais religiosos
que a família preza?
Quando a memória histórica
de um grupo familiar não é
mantida, quando suas tradições não são transmitidas aos
filhos, não são apenas fatos e
estilos de vida que não são preservados. Toda uma matriz
de identidade daquele
grupo, que tem a função
de deixar marcas de
identificação nas novas
gerações, é ignorada.
Parece que os grupos
familiares passaram
por um processo de
pasteurização. Será
que não estamos submetidos a um modo de
viver totalitário, que,
como disfarce, aceita
famílias de diferentes
configurações, mas
não aceita diferenças
nessa aparente diversidade? Precisamos
pensar nisso, pois pode ser que estejamos
criando uma geração
sem herança cultural,
sem identidade familiar
e com ascendência desconhecida.
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?"
(ed. Publifolha)
roselysayao@folhasp.com.br
blogdaroselysayao.blog.uol.com.br
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