São Paulo, quinta-feira, 14 de junho de 2007
Texto Anterior | Índice

Rosely Sayão

De geração em geração

Quem tiver a chance de observar a hora do recreio de uma escola em que os alunos levam o lanche de casa perceberá um fato bem interessante: as merendas das crianças de famílias diferentes são muito parecidas e variam apenas de um dia para o outro. Se considerarmos as roupas, constataremos o mesmo fenômeno: elas se vestem de modo muito semelhante. O mesmo vale para cortes de cabelo, músicas que sabem cantar, histórias que conhecem e tipo de linguagem que usam.
Numa época em que a mídia tem tanta força, não são estranhas tais ocorrências. Mas elas nos permitem ir além e construir conjecturas sobre o processo por que passa a cultura familiar: parece que ela vai se esvaindo e perdendo sua força.
Hoje é legítimo se perguntar o que diferencia os integrantes -sobretudo os mais novos- de famílias com sobrenomes diferentes. Quais as diferenças entre fazer parte dessa ou daquela família? Quais as características de uma família e de seus costumes em relação às outras, segundo a ótica dos filhos? Quais os elos -além dos de parentesco- entre um grupo familiar e suas famílias de origem?
A família, sistema social responsável por transmitir a seus membros a primeira matriz de identidade e de pertencimento, parece que passou a acreditar que tal transmissão ocorre por osmose. A história familiar -sua memória, sua organização e seu patrimônio cultural- tem sido relegada ao esquecimento por fundadores de novas famílias. Por que será?
Uma hipótese possível é que, em um mundo admiravelmente novo a cada dia, as tradições familiares (talvez se possa dizer o mesmo de qualquer tradição), quando não são simplesmente esquecidas, são consideradas ultrapassadas, autoritárias, rançosas. Perderam mais do que o valor: perderam o lugar.
Outra hipótese é que, sendo a família um local de grandes conflitos, o melhor a fazer seria tentar colocar o passado entre parênteses para criar uma nova família. Seria uma tentativa de começar do zero, como gosta de dizer um amigo, para tentar anular antigos problemas.
O fato é que os fundadores das novas famílias quase não encontram motivos para repetir e transmitir a seus filhos as receitas tradicionais, os ritos das férias ou dos fins de semana, as rotinas de organização, os costumes na relação com parentes e amigos, os valores construídos por gerações. Afinal, por que passar uma manhã toda de domingo preparando um almoço familiar tradicional se é bem mais simples ir a um restaurante, pedir uma refeição entregue em domicílio ou comprar semipronto? Por que recontar aos filhos histórias que habitaram a própria infância se os tempos são tão diferentes e as crianças também? Por que narrar as peripécias de parentes que os mais novos não conhecem? Por que levar os filhos a participar de rituais religiosos que a família preza?
Quando a memória histórica de um grupo familiar não é mantida, quando suas tradições não são transmitidas aos filhos, não são apenas fatos e estilos de vida que não são preservados. Toda uma matriz de identidade daquele grupo, que tem a função de deixar marcas de identificação nas novas gerações, é ignorada.
Parece que os grupos familiares passaram por um processo de pasteurização. Será que não estamos submetidos a um modo de viver totalitário, que, como disfarce, aceita famílias de diferentes configurações, mas não aceita diferenças nessa aparente diversidade? Precisamos pensar nisso, pois pode ser que estejamos criando uma geração sem herança cultural, sem identidade familiar e com ascendência desconhecida.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (ed. Publifolha) roselysayao@folhasp.com.br

blogdaroselysayao.blog.uol.com.br


Texto Anterior: [...]
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.