São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 2005
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Outras idéias

Dulce Critelli

Anjos da guarda podem ser qualquer um

Faz tempo, tive um sonho, de que, vez por outra, me lembro. Eu saía de uma festa na casa de um amigo. A casa ficava no fundo de uma vila, onde uma pequena praça redonda se abria. No centro dessa praça, no lugar de um jardim, havia um mapa desenhado no chão. Era o mapa de toda a minha história de vida.


Se existem, os anjos são iguais a todos nós; tão incapazes quanto nós de decifrar o presente e o futuro


Fiquei mais do que curiosa. Precisava vê-lo por inteiro. Como ele era extenso, não conseguia ter uma perspectiva do conjunto. Desejei como nunca ter uma visão de cima e do alto. Imediatamente, comecei a sobrevoá-lo e a observar, absorvida, todos os detalhes.
Já tinha visto tudo quando me dei conta de que estava voando. Pousei suavemente. Quando já estava com os pés no chão, alguém saiu de trás de mim. Era quem tinha me segurado e feito voar: um rapaz muito pequeno, feio, com a coluna torta e, no rosto, as marcas de um retardo mental. Era meu anjo da guarda. Entre decepcionada e admirada, agradeci. Sem qualquer noção do que fizera, meu anjo me encarou como se me visse pela primeira vez e, com grande espanto, perguntou: "Eu?".
Quando acordei, estranhei que meu anjo não fosse lindo, forte, translúcido, seguro de si. Mais ainda me inquietou o fato de ele nem saber que era meu anjo da guarda, meu guia e protetor. Então ele não me guardava por vontade própria ou por alguma determinação? Seriam os anjos inconscientes de sua tarefa? Anjos por acaso? E seriam eles, então, tão frágeis e indigentes quanto os seres humanos?
Pensamos pouco e enxergamos tudo por meio de fantasias, sejam elas pessoais ou coletivas. A idéia do meu anjo, eu a tirei de livros de religião e de catecismo, de histórias e de quadros que, na maioria, vi na minha infância. Imaginava-os sem erros, dúvidas ou ignorâncias. Mais sábios, mais clarividentes. Superiores.
Meu sonho me fez pensar que, se existem, os anjos são iguais a todos nós. Portadores das mesmas e tristes mazelas. Tão incapazes quanto nós de decifrar o presente e o futuro.
Anjos podem ser qualquer um: o mendigo da esquina, um conhecido, até um inimigo. Anjos são todos os que realizam nossos sonhos mais ocultos, os que nos ensinam, os que nos amam. São os que nos salvam ou nos abrem uma porta. Mesmo que, na maioria das vezes, não o saibam.
Se existem anjos da guarda, eles também não estão atentos a nós todo o tempo. Apesar de toda a esperança, ou de toda a simples expectativa, estamos sempre entregues a nós mesmos. O amparo de que precisamos está incrustado nos fatos da vida mesma e no seu transcurso. Sem nenhuma segurança. Sem nenhuma prévia garantia. Sem nenhum aviso.
Pisamos sobre sombras, sobre um abismo insondável, ininterruptamente. Só o que nos pode sustentar sobre ele, sem quedas e sem desespero, somos nós mesmos. É da nossa condição humana encontrarmos saídas no "nada". Vislumbrarmos o improvável. Encontrarmos o impossível. Quando tudo parece acabar, alguém acha um caminho. Quando achamos que não agüentamos mais, uma força nos alcança. Não é preciso fazer nada, quebrar a cabeça. É uma possibilidade dos seres humanos iluminar o escuro e saltar sobre os seus pesadelos.
Quando dizemos que os anjos nos salvam, é porque quebramos nossa resistência ao que é novo para nós mesmos e nos permitimos aceitar o que é diferente e ir atrás de nossos propósitos e necessidades.
Nossos conhecimentos, no caso de suportarmos a rede movediça sobre o abismo, ajudam pouco, pois sempre somos perseguidos pelo esquecimento. Tudo de que tive consciência naquele sobrevôo sonhado jamais consegui relembrar. O que ficou foi só o vôo mesmo. Podemos tanto quanto podem os anjos.

DULCE CRITELLI , professora de filosofia da PUC-SP, é autora de "Educação e Dominação Cultural" e "Analítica de Sentido" e coordenadora do Existentia - Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana
@ - dulcecritelli@existentia.com.br



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