São Paulo, terça-feira, 14 de dezembro de 2010
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NEURO

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - suzanahh@gmail.com

Uma linguagem, várias línguas


Laboratórios são torres de Babel que nos lembram como são arbitrários os idiomas humanos

O BRASIL é um país enorme onde todos falam a mesma língua. Por falta de convivência com outros povos, é fácil esquecer a enorme diversidade de línguas que o cérebro é capaz de dominar, cada uma com seu conjunto de sons e rabisquinhos para transmitir um mesmo significado.
Laboratórios, ao contrário, várias vezes são torres de Babel que nos lembram quão diversas e arbitrárias são as línguas humanas. Agora, por exemplo, estou na Austrália, visitando um pesquisador grego. Em seu laboratório, há húngaros, chineses e australianos; em sua casa, onde estamos hospedados, ouve-se ao redor da mesa de jantar inglês, português e grego.
Ouvir tantas línguas ao mesmo tempo é um convite à especulação sobre suas origens a partir de uma habilidade cerebral comum a todos nós, humanos: associar significados a sons e imagens, que passam a representar aquele significado e comunicá-lo de um cérebro para outro.
É curioso ouvir uma troca de sons que são cheios de conteúdos e significados para os outros, mas não nos dizem absolutamente nada: são apenas um borrão de sons, emendados continuamente uns nos outros. Talvez assim a língua materna soe aos nossos ouvidos, no começo: um grande borrão sonoro. Divirto-me pensando que começamos a falar quando bebês produzindo tais borrões, crentes de estarmos fazendo o que fazem conosco.
Até que alguns desses sons passam a fazer sentido, quando o cérebro nota que são sempre casados com o mesmo objeto, ação ou resultado; assim, mmm-aaaa-bububu dá lugar a mãmãmã, e depois mamãe.
E não é preciso ter um professor: crianças surdas criam sozinhas a sua própria linguagem, usando gestos, ao invés de sons, associados a significados. Quando já somos grandes, fazer essas novas associações fica mais fácil: basta associar um conteúdo de uma língua ao som correspondente em outra.
E assim, conforme ouvimos grego na casa do nosso anfitrião, subitamente alguns blocos de som saltam aos ouvidos - "efharis-tó", "kaliméra", "né!"-, emergindo do borrão de sons estrangeiros como ilhas de significado no meio do burburinho, agora reconhecíveis como palavras que fazem sentido para o cérebro: "obrigado", "bom dia" e "sim" já fazem parte de nosso vocabulário. Reconhecer essas palavras por escrito, contudo, são outros quinhentos: outra parte do cérebro.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "Pílulas de Neurociência para uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com


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