São Paulo, quinta-feira, 15 de março de 2001
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outras idéias

Qualidade de vida no sofrimento

cecília casali oliveira

A dor da perda é o preço pelo prazer de amar, de gostar, de dividir a vida com outras pessoas. O luto é o processo de construção de uma nova etapa de vida

Nas últimas semanas, acompanhamos o agravamento da doença do nosso governador, seguida por sua morte, que comoveu milhares de pessoas. Mário Covas compartilhou conosco o período final de sua vida ao autorizar os médicos a expor sua condição clínica, ao mostrar abertamente suas dificuldades, seu sofrimento e suas emoções; dividiu sua intimidade conosco. Com essa atitude, ele permitiu que antecipássemos a possibilidade de sua morte e nos preparássemos para ela.
A morte nos reúne em torno dela e nos iguala nos sentimentos de perplexidade, dor, tristeza, raiva, confusão. O luto é a resposta natural e esperada após uma perda, que exige um processo de reorganização de longo prazo.
A morte de uma pessoa pública nos leva ao luto coletivo e às cerimônias públicas de despedida. São rituais que marcam a perda, ajudam a encontrar um sentido para ela e permitem um compartilhamento das emoções, que são socialmente permitidas e aceitas.
O Brasil tem enfrentado diversos lutos coletivos nos últimos anos, de políticos, artistas, atletas. Mas muitas outras situações têm trazido morte e luto a outras pessoas, que não recebem a mesma atenção. E aí o luto coletivo tem um outro sentido, de reciclar os lutos pessoais, nem sempre permitidos. Cada pessoa relembra suas perdas, recupera as lembranças, atualiza e expressa sentimentos, reorganizando-se internamente.
E como falar em qualidade de vida no momento do sofrimento?
Ao se contrapor à vida, a morte nos ensina a buscar uma vida melhor, porque ela nos diz que nosso tempo é limitado e, por isso, valioso. Ela oferece uma oportunidade para avaliar nossa vida, para rever e renovar o sentido que lhe damos. Podemos olhar para o que estamos conquistando, além daquilo que nós perdemos; é o momento de (re)descobrir as pessoas de quem gostamos, as qualidades que admiramos, nossos objetivos e nossos sonhos.
Não gostamos de sofrer, não gostamos de sentir saudade, não gostamos de perder aquilo que amamos. Mas é algo necessário, pois todos nós enfrentamos perdas e morte em algum momento de nossas vidas. Podemos nos permitir maior sensibilidade ao nosso sofrimento e ao alheio porque essas coisas acontecem em todos os contextos e podemos aprender a compartilhar isso, sem excluir e sem negar a dor. É triste sentir a falta, mas alivia sabermos que preservamos em nós muita coisa valiosa adquirida por meio das nossas relações. Podemos -e devemos- ensinar esse processo às crianças, em casa ou nas escolas, nas comunidades, nas empresas.
Nunca vamos esquecer a pessoa que amamos e perdemos. Ela pode ser substituída em suas tarefas, mas não em nosso afeto; vamos guardá-la conosco e preservar o carinho. Mas leva tempo. Lembramos com saudade e angústia no início e devagar passamos a lembrar com mais carinho do que dor.
A dor da perda é o preço pelo prazer de amar, de gostar, de dividir a vida com outras pessoas. O luto é o processo de construção de uma nova etapa de vida, que pode ser positiva, se houver um enfrentamento saudável do sofrimento, pois se traduz em crescimento e enriquecimento pessoal.



CECÍLIA CASALI OLIVEIRA, psicóloga, é sócia do 4 Estações, Instituto de Psicologia, serviço voltado ao atendimento de pessoas enlutadas e a treinamento de profissionais




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