São Paulo, quinta-feira, 15 de abril de 2004
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outras idéias

Trabalho

Tarefa boa é a criativa, que respeita o indivíduo em seu ritmo. Cargo desejável é aquele no qual podemos impor nosso horário. Mas isso é cheio de paradoxos

anna veronica mautner

Nestas férias de verão, tive a sorte de comprar um livrinho que mais me chamou a atenção pelo autor do prefácio (Henry Miller) e da introdução (Eduardo Bueno) do que pelo nome do próprio autor, Cabeza de Vaca -para mim, até então um desconhecido. Ele escreveu uma espécie de diário sobre sua travessia de norte a sul do novo continente no século 16. O que mais me atraiu no relato de suas peripécias foi o fato de ele ter sido escravizado pelos índios diversas vezes, em diversos lugares. Para que quereriam os índios um escravo branco? Pois queriam-no para fazer tarefas que eles não gostavam de fazer. Os índios não são, quando em liberdade, em seu habitat, aquela gente feliz que a gente poderia imaginar. O relato de Cabeza de Vaca confirma que, apesar de próximos da natureza, não eram tão felizes assim. Não gostavam de carregar peso e de tarefas cansativas em geral.
O nosso autor não foi o único branco europeu perdido, vagando pelo continente. Volta e meia, encontrava em suas andanças outros náufragos sonhadores perdidos em aldeias indígenas. Curiosamente, temiam sempre a desdita de serem escravizados. Pelo que conta, em toda aldeia sobrava trabalho que ninguém queria fazer. Prevalecia o sonho de ter alguém para fazer tarefas chatas, tal qual acontece entre os povos ditos civilizados, cristãos e brancos.
Lendo o livro, lembro-me de Helene Clastres, que, lá pela década de 70, foi estudar "in loco" os índios de um aldeamento no Orenoco. Ela foi a segunda pessoa branca a entrar em contato com os ianomâmis. Um padre francês a antecedera. Lá chegada, ela quis ser gentil e foi ajudar as mulheres em suas tarefas. No dia seguinte, o padre a avisou: não se ponha à disposição porque elas vão explorá-la. Elas também não gostavam de carregar água do rio nem de amassar barro ou ralar mandioca. Nunca me esqueci desse relato de Helene. Lendo o livro de Cabeza de Vaca, "Náufragos e Comentários", vi confirmados os comentários de Helene, o que me fez matutar sobre a quantidade de tarefas que somos obrigados a realizar sem gostar. Parece que, em qualquer cultura, os trabalhos pesados, desagradáveis, são evitados. Isso parece fazer parte da empreitada de viver.
Alguns povos prendem estranhos, outros fazem acordos, como relata a Bíblia, por exemplo, a respeito de Jacó, que, para obter sua amada Raquel, teve de servir a Labão por sete anos e depois por outros sete. Na forma de escravo, servo ou como operários explorados pelo terrível capitalismo, a alguns homens cabe uma fatia pior e maior de tarefas desagradáveis, enquanto outros se livram delas. Isso me alivia da culpa de ser de raça branca quando constato que outros povos de outras cores -e, pelo visto, em todas as épocas- procuram trocar o mal pelo bem-bom. As formas de dominação podem ser variadas, mais ou menos cruéis. Mas, sem dúvida, empregamos bastante "engenho e arte" para colocar outro para fazer o que não queremos fazer.
A luta na guerra, todas as tarefas de conquista, apesar de cansativas e perigosas, não são delegadas. Às vezes, são feitas até por voluntários. Então nem tudo o que é cansativo e pesado é negativo. Será que é o repetitivo ou o sujo que rejeitamos? Mesmo o conceito de sujo não é universal, e sim determinado culturalmente. Acho que não vou ser capaz de definir a qualidade do que torna a tarefa desagradável. Vou preferir falar mais um pouco sobre a possível característica universal do desejo de delegar ao outro a tarefa vista como indesejável ou simplesmente o prazer de delegar.
No século 20, instituíram-se nas indústrias as linhas de montagem e, imediatamente, surgiram os críticos veementes a essa forma de produção. Desde o século 18, no início da Revolução Industrial, os trabalhadores das cidades foram engajados no trabalho mecânico de se movimentarem juntos, em ritmo igual ao da máquina. Acho que esse casamento de homem e máquina, de horários coletivos, sincrônicos, gerou algo de novo atrelado à noção de tarefa "desagradável". O trabalho pesado, sujo, continua sendo aversivo. Mas a nova forma de escravidão do homem ao motor da máquina tornou mais esse trabalho rejeitável. O macacão e o colarinho branco estão hoje juntos na categoria de alienantes. Tarefa boa é a criativa, que respeita o indivíduo em seu ritmo pessoal. Cargo desejável é aquele no qual podemos impor nosso horário e nosso ritmo. Mas isso tudo não é claro, é bem cheio de paradoxos. A mulher, por exemplo, ainda sonha em sair de casa para submeter-se a essa alienação, enquanto o homem sonha em se livrar dela, trabalhando em casa. Não importa qual é a organização social do trabalho, o homem parece sempre encontrar um jeito de declarar certas tarefas como subalternas. Em torno dessas e outras qualificações que a atividade humana recebe, a sociedade se organiza em classes, grupos, raças, conhecimentos, de tal forma que caiba a alguns uma fatia maior do desagradável. E assim se organiza o mundo...


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui uma vez por mês; e-mail: amautner@uol.com.br


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