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São Paulo, quinta-feira, 15 de maio de 2003
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A convivência com a obra de arte sensibiliza o expectador, ampliando a sua visão de mundo

A arte melhora a qualidade de vida

France Presse/Robyn Beck
Visitante pasma diante da escultura "Sem Título", do australiano Ron Mueck


DORIS FLEURY
FREE-LANCE PARA A FOLHA


"Gosto de dizer que a obra de arte é menos um objeto que um sujeito: sujeito esclarecedor, sujeito que aguça nossa sensibilidade, sujeito que amplia e torna mais complexa nossa visão do mundo. Esse conhecimento, esse aperfeiçoamento, não são passados de um modo conceitual ou racional: são modos silenciosos que agem, são as "vozes do silêncio", como escreveu Malraux"

Jorge Coli, professor de história da arte da Unicamp e colunista da Folha


"A arte faz bem ao corpo e ao espírito, ao rim e ao fígado. O baço adora arte. Quando vemos arte, o coração bate mais compassado, e nossos artelhos ficam lépidos e dançantes. Nossa aura adquire uma cor azulada, e os chacras superiores emitem mais vibrações. Antes de fazer terapia reichiana ou acupuntura, as pessoas deveriam ir a uma galeria!"

As palavras do artista plástico José Roberto Aguilar, acima, podem parecer passionais ao extremo, mas nem por isso são desatinadas, distantes da realidade. A aproximação e o contato com a obra de arte, seja ela pintura, escultura ou instalação, tem o poder de interferir na vida do expectador.
"Gosto de dizer que a obra de arte é menos um objeto que um sujeito: sujeito esclarecedor, sujeito que aguça nossa sensibilidade, sujeito que amplia e torna mais complexa nossa visão do mundo. Esse conhecimento, esse aperfeiçoamento, não são passados de um modo conceitual ou racional: são modos silenciosos que agem, são as "vozes do silêncio", como escreveu Malraux", diz Jorge Coli, professor de história da arte da Unicamp e colunista da Folha.
As sensações experimentadas diante de uma obra levam o expectador a entrar em contato com outras dimensões da sua realidade interna e também da realidade externa. A artista plástica e "personal artist" Cláudia Colagrande conta que um aluno dela chegou, no segundo dia de aula, dizendo que nunca havia reparado nas copas das árvores da sua rua até aquele momento, quando passou a enxergá-las, referindo-se ao estímulo que sua sensibilidade recebeu e a consequente mudança de atitude.
"Os benefícios do contato com a arte vão desde a percepção melhor das cores até a melhora da afetividade, passando pela reflexão política", afirma o diretor do Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, Paulo Herkenhoff.
"A arte amplia a consciência da vida", diz a artista plástica Denise Milan. Como exemplo, ela cita Goya (1746-1828), mestre espanhol, ao retratar crianças brincando. "Ao colocar esse momento lúdico como protagonista, ele leva o expectador a se conscientizar de que o brincar é algo válido, importante dentro do sistema de valores", diz Milan. Isso se processa por meio da sensação de prazer transmitida pela obra. Assim, "a arte requalifica, pontua o que é importante na vida".
"Trata-se de uma outra dimensão da vivência humana, fora do mundanismo, da globalização, do consumismo, do imediatismo que nos envolve", completa a crítica de arte Aracy Amaral.
Nos últimos anos, grandes exposições de artes plásticas têm feito barulho na mídia e atraído muito público. Mas a badalação em torno desses megaeventos, como as mostras "Brasil 500 Anos", em 2000, e "China: Os Guerreiros de Xi'an e os Tesouros da Cidade Proibida", em cartaz no pavilhão da Oca, escondem alguns fatos. No dia-a-dia, o brasileiro não é grande frequentador de museus ou de galerias.
"Quando fizemos a 24ª Bienal de São Paulo, descobrimos que 45% do público que nos visitou nunca havia ido a uma exposição antes", diz Herkenhoff, que foi curador do evento em 1998.
Por que as pessoas têm tão pouca familiaridade com a arte? "Porque nossa cultura tem eliminado formas complexas de ser. Isso é tão extremo que, muitas vezes, a arte chega a desaparecer sob si própria", diz Coli, referindo-se às mostras espetaculares, que trazem de longe quadros e estátuas de grandes artistas. Em algumas, as obras se perdem em encenações estapafúrdias, e a atenção ao objeto é eliminada, em benefício do prestígio social que dele emana.
Para Coli, os megaeventos pontuais não substituem a intimidade com a arte. O usuário de verdade se forma por meio de um contato cotidiano com as obras, frequentando museus com bom acervo, que não funcionem apenas como galerias de exposições temporárias. "É essencial que o frequentador de museus encontre o quadro que ele gosta ali, no lugar de sempre; um quadro, uma estátua ou uma gravura é assim como um amigo, com o qual podemos contar", diz o historiador.
Falhas na formação cultural da atual geração de adultos também favoreceu esse distanciamento da arte. "Depois do agito político e cultural da década de 60, o governo retirou do currículo escolar tudo que fosse mais instigante, que levasse as pessoas a refletir", diz Colagrande. Isso reforça a crença de que quem não "entende" de arte não tem o que fazer em um museu.
Mas será que é preciso entender de arte para se beneficiar dela? "Claro que não. Ninguém precisa "entender de literatura" para ler um romance. Eu diria, porém, que é necessária uma certa disponibilidade. Disponibilidade significa atenção, tempo de observação, reflexão e o prazer em encontrar, por meios intuitivos, relações que nos seduzem. Isto situa-se no oposto da experiência comum que temos, hoje, com as imagens. Elas nos são oferecidas, frequentemente, de modo acelerado, momentâneo. Nosso tempo nos educa para uma visão ágil, que nos permite captar certos aspectos importantes em nosso cotidiano, mas que emperram o olhar analítico. Uma rosa e um quadro possuem, é claro, características muito diferentes, mas, para a apreciação de ambos, é preciso um olhar prolongado, uma espécie de "tempo meditativo'", diz Jorge Coli.
Conhecimento não é requisito obrigatório, mas ajuda na apreciação de uma obra. E tais informações podem ser bem mais simples do se imagina, como a biografia do artista, dados sobre a sua obra ou sobre as circunstâncias em que ela foi produzida. "Mas isso não elimina o elemento surpresa, inerente a toda obra, diz Elza Ajzenberg, diretora do MAC-USP (Museu de Arte Contemporânea da USP).
Mesmo que o visitante tenha um referencial sobre o que vai ver, vários elementos, como a cor e o momento, vão desencadear nele sensações e descobertas, diz a diretora do MAC.
"A arte, embora parta de uma longa série de referências, chega ao seu público por meio dos sentidos e tem a função de se comunicar com letrados e iletrados", diz o crítico de arte e curador do MAM (Museu de Arte Moderna), de São Paulo, Felipe Chaimovich. A função da arte é comunicar alguma coisa.
Falar da função social da arte está muito em moda. Inúmeros projetos usam as artes plásticas como forma de prevenção do crime, de fortalecimento dos laços comunitários e de educação de jovens em favelas. Essa tendência é irreversível, diz Aguilar. Para ele, estamos num momento que, sob esse ponto de vista, se assemelha ao do Renascimento. O papel da arte na formação da cidadania será cada vez maior.


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