São Paulo, quinta-feira, 15 de novembro de 2007
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Outras idéias - Anna Verônica Mautner

Praça x Orkut

Podemos nunca ter pensado na diferença entre se reunir e se unir. Reunidos, formamos um coletivo e, assim, estamos em um sem-número de atividades cotidianas. Reunidos estamos quando esperamos por condução, quando torcemos em um estádio, quando somos tietes em shows, em desfiles patrióticos e em solenidades religiosas.
Formamos um coletivo diante de uma circunstância agregadora. Os que vão ao show ou aguardam o ônibus sabem que estão ali pelo mesmo motivo. Vindos de milhares de casas diferentes, confluímos sem nos conhecer. Reunidos sem planejamento e sem que qualquer interação se faça necessária, reconhecemos estar no mesmo diapasão -curtindo a mesma admiração ou espera.
O fato de termos sido atraídos por um anúncio nos dá segurança do que nos espera. Não é raro haver tumulto em multidões -isso ocorre na decepção, quando aquilo que nos trouxe não se realiza: o show que não acontece, o ônibus que não chega, o avião que não parte. O mais comum é as pessoas procurarem a proximidade de seus semelhantes. Esse tipo de congraçamento de anônimos é cada vez mais freqüente, e os locais para esses eventos se ampliam, sem que desapareçam locais pequenos, onde, ao contrário do que ocorre em multidões, encontramos união.
Os espaços de eventos promovem encontro de semelhantes. Vai ao show do Caetano quem gosta do Caetano. Se está lá, dá sinais claros de apreciar o que foi anunciado. No jogo do Palmeiras com o São Paulo, é raro encontrar corintiano. Estar entre semelhantes é um passo para o conforto, mas não é o suficiente para um mundo interno tranqüilo.
Onde é que nós vamos encontrar um parceiro para uma boa troca afetiva ou intelectual? Espaços físicos, livres para ir e vir, são muito poucos, tanto que o Brasil se tornou um dos países que mais usam salas de encontro na internet. Apesar de esse recurso permitir dissimulação, é ainda o lugar onde a população com acesso à internet pode se refugiar à procura de diálogo sem precisar de carteira de sócio.
Pode parecer uma afirmação precipitada, mas foi a que ocorreu em primeiro lugar. As salas de bate-papo geram amizades e até casamentos, mas faltam o olhar furtivo e os gestos que nem o Skype consegue suprir. Permita-me recorrer a memórias de um passado nem tão longínquo quando cada bairro tinha seu "ponto". À tardinha, os jovens se dirigiam para lá em grupos, moços pra cá e moças pra lá, para trocarem olhares e se escolherem. Depois de semanas em que os olhares repetidos asseguravam aceitação, o moço ia falar com a moça.
Nas cidades pequenas, o ponto era nas praças; nos bairros, em alguma rua larga. As famílias permitiam aos jovens ir ao "footing" porque, se assim não fosse, como começariam a namorar sob os olhos zelosos da comunidade? Nas esquinas, os bares eram o ponto de encontro de homens que batiam papo até mais tarde, quando as mulheres já estavam em casa. Na Antigüidade, havia a ágora, onde se trocavam idéias, mercadorias e notícias. Era um mercado que hoje se chama Orkut. Só que agora o olhar furtivo não existe.
São Paulo já teve suas ágoras: a biblioteca municipal, as saídas das missas, os bares perto de escolas e universidades. Por aí ainda encontramos resquícios do "footing". Pontos de encontro são necessários, e não é saudosismo barato. Sugestões? Mais de um Sesc em cada bairro, mais centros culturais, muito mais espaços livres. Nada contra a virtualidade do computador, mas tudo pela construção de histórias ligadas a lugares, eventos e liberdade de ir e vir.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
amautner@uol.com.br



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