São Paulo, quinta-feira, 16 de março de 2006
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Beleza

Novo conceito abandona perfeição e prioriza saúde, bem-estar e longevidade

Espelho, espelho meu

TATIANA DINIZ
DA REPORTAGEM LOCAL

Rostinho bonito, corpinho sarado e pouquíssimos quilos. A fórmula que resumiu o ideal de beleza ao longo da última década pode despencar. Um novo conceito, o de beleza sustentável, promete pôr em xeque a perseguição por padrões estéticos preestabelecidos. A idéia é combater o desejo pela perfeição e refazer as conexões entre beleza, saúde, longevidade e bem-estar. O assunto será tema de um congresso inédito que acontecerá em novembro deste ano, em São Paulo, e pretende reunir 750 profissionais para debater o padrão estético vigente.
"Essa ditadura da beleza efêmera está insuportável. É preciso dar um grito de independência", comenta Carla Góes Sallet, 38, especialista em medicina estética. Em seu último livro, "Belíssima aos 40, 50, 60, 70..." (ed.Conex, 248 págs. R$ 62), ela enfatiza que a beleza é distinta nas diferentes épocas da vida. "Ser bela é sentir-se bem, e sentir-se bem passa por se aceitar. Qual o sentido de uma mulher de meia-idade se achar feia por não ter as medidas de uma miss?", observa.
A psicanalista Maria Lucia Homem chama o momento atual de "ditadura da Barbie". E alerta para as conseqüências dela. Em um estudo que traça paralelos entre os valores contemporâneos e o sucesso da boneca, ela aponta que a perseguição pelo "ideal" provoca "disfunções entre o externo e o subjetivo", gerando sofrimento e desencadeando doenças.
""Performar" é o verbo soberano atualmente. É o império do espetáculo, do falseamento. Então, a subjetividade é recalcada e retorna na forma de angústia, de depressão e de tantas outras doenças contemporâneas. O ideal, como o termo já diz, é inatingível. Persegui-lo é uma lógica suicida", observa.


Em 2004, foram realizadas 617 mil cirurgias plásticas no Brasil, 60% delas para fins estéticos

Em seu consultório, a especialista conta que acompanha vários casos de "pós-Barbies". "São mulheres que malharam e fizeram plásticas, mas se sentem infelizes. Afinal, o que fazer se você se tornou uma cinqüentona gostosa, mas seu marido a deixou mesmo assim? Há um embate entre a idéia e o real", explica. "A humanidade quer escapar dos limites, ninguém mais pode ter rugas, é preciso apagar os sinais do tempo. Isso não é sustentável."

PLÁSTICAS
No país vice-campeão em cirurgias plásticas no mundo -o Brasil perde apenas para os Estados Unidos-, os números testemunham a busca pela aparência perfeita. Segundo dados da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (www.cirurgiaplastica.org.br), em 2004 foram realizadas 617 mil cirurgias, 60% delas para fins estéticos. As mulheres receberam 70% das intervenções. E mais: os adolescentes respondem hoje por 15% da clientela, denunciando o sofrimento precoce diante da pressão pela beleza padronizada.
Ainda de acordo com os dados da SBCP, a lipoaspiração é o procedimento mais procurado no país, seguido das intervenções nas mamas (aumento ou diminuição) e das modificações na face -olhos, nariz, lábios e outros.
Apesar disso, quem entra no consultório do cirurgião plástico Antonio Luiz Pássaro, do hospital Oswaldo Cruz, pode escutar dele nada mais que um elogio. "Muitas vezes digo que o nariz [do paciente] é lindo e sugiro que corte o cabelo. Se não há indicação, sinto-me responsável por tirar da cabeça dele a idéia de que precisa da cirurgia. A mídia banalizou a plástica, e as pessoas agora querem sanar suas frustrações com recursos externos."
O médico alerta para o fato de que "a cobrança estética gera uma angústia existencial, e há uma exploração dessa angústia". "E a responsabilidade social, onde fica? A indústria cosmética já fatura mais que a automobilística e a siderúrgica juntas. Enquanto isso, as mulheres estão se esquecendo de desenvolver características que sempre as destacaram, como o charme, a sensualidade e a feminilidade. Não dá para preencher isso com botox", diz.

AUTO-IMAGEM
Dentro do conceito de beleza sustentável, ser belo deixa de ser perseguir o padrão para se tornar sentir-se belo, aceitar-se, conhecer as características do próprio corpo, ter identidade e personalidade e buscar, continuamente, saúde e bem-estar. Ou seja, sentir-se bem.
"É uma postura de comprometimento consigo mesmo. A sensação de beleza é algo que oscila, e, quanto melhor a pessoa está consigo, mais bonita se sente. Quem não se aceita sofre com a involução da beleza estética e se deprime com o envelhecimento", afirma a psicóloga Roselene Souza Lima, mestre em gerontologia e autora da tese "A Construção do Envelhecimento", defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em 2004.
Uma pesquisa feita pela empresa Strategy One para a marca de cosméticos Dove ouviu mais de 3.000 mulheres com idade entre 18 e 64 anos, em dez países. Mais de 60% delas classificam sua beleza como "média" ou "natural". Nenhuma declarou se achar sexy.
"Acho meu cabelo feio, mas gosto dele mesmo assim, vejo que ele me dá personalidade. Quando estou feliz, olho no espelho e me acho bonito. Mas, nos dias em que estou deprimido, fico me achando horrível. Nessas horas de tristeza, não tem produção nem plástica que dê jeito na feiúra." O sentimento experimentado pelo diretor de arte Fábio Spark, 30, é comum à maioria das pessoas e evidencia o reflexo do aspecto emocional sobre a auto-imagem.
"A depressão é feia", resume a psicanalista Esther Woiler. "A auto-imagem é uma construção de base emocional. O modo como você está se percebendo emocionalmente pode distorcer a sua imagem corporal. Há casos sérios de distúrbios de percepção da imagem. É o que acontece com a magra que sempre acha que é gorda e faz dieta até adoecer. Muitas vezes, por trás dessa insatisfação com a aparência, o que existem são distúrbios de identidade. As pessoas que vivem fazendo plástica têm, geralmente, problemas desse tipo", observa a especialista.

PERSONALIDADE
Conhecida por seus textos ácidos, a escritora Clarah Averbuck, 26, diz que é na personalidade incomum que reconhece seu traço mais belo. "Demorei para me achar bonita. Sou nariguda, tenho peitão, minhas olheiras são de panda. Sou vaidosa com isso, cuido do visual, uso maquiagem", diz.

Especialistas dizem que, sem aceitação, não há solução; intervenções estéticas bruscas podem ser desastrosas ou inúteis

"Mas percebi que o que acho bonito nas pessoas sempre é a personalidade, e a minha personalidade é forte desde quando eu era pequena. Homem bonitinho, com cara de modelo, por exemplo, não me atrai nunca, parece boneco de plástico. Hoje desencanei e me aceito bem", conta.
Os especialistas são unânimes: sem aceitação não há solução. E, nesse contexto, uma intervenção estética brusca pode até mesmo ser desastrosa ou, no mínimo, inútil.
Aos 18 anos, a estilista Ana Cristina Prates Carneiro, 32, decidiu fazer uma lipoaspiração. "Nunca me achei uma baleia, mas todas as minhas amigas estavam fazendo. Então pensei que, se elas podiam ser perfeitas, eu também podia e resolvi afinar as coxas e o quadril."
O primeiro choque foi a recuperação. "Não é uma coisa simples, é doloroso, incômodo e desagradável. Fiquei uma semana na cama, sem prestar para nada. Depois disso, durante um ano, me senti uma modelo. Durou até a briga com o primeiro namorado. Aí engordei pouquíssimo, uns três quilos no máximo, e tudo voltou a ser exatamente como era antes. Aquelas eram as minhas curvas naturais", conta.
Hoje Ana se diverte lembrando-se da história e diz que nunca mais pensou em repetir a dose. "Quando olho minhas fotos de antes da lipo, dou risada de mim mesma. Meu corpo era perfeito. Hoje, minha receita para ser bonita é ser feliz. Quando você se gosta, irradia. Sei muito bem que não vou ter cara de 25 anos para sempre e estou bem com isso", diz.
A atriz Leandra Leal, 23, conta que já teve de responder com sonoros "nãos" a propostas de mudanças bruscas na sua fisionomia. "Já me sugeriram de tudo, de perder peso a fazer plástica no nariz. Como assim mexer no meu nariz? Isso é minha identidade", diz.
Há um ano, ela decidiu emagrecer, mas a escolha foi por perder peso de maneira gradual, sem querer resultados imediatos.
"Por causa do trabalho, sempre vivi emagrecendo e engordando. Já fiz essas dietas radicais, com remédios, em que se perde muito peso em pouco tempo. Desta vez, resolvi fazer a coisa pensando na minha saúde. Mudei meus hábitos alimentares e fiz vários tipos de exercício. Não estou tentando ser sarada, o que quero é me sentir bem", relata.
Pesando 13 kg a menos, ela conta que seu corpo mantém suas características. "Meu sutiã continua a ser 44, e eu não entro em uma roupa 38 de jeito nenhum. E entendi que é isso mesmo, que essa é a minha estrutura, e que bom que meu corpo é assim. Infelizmente, a humanidade embarcou nessa piração do culto ao corpo. Espero que agora saiba sair dela."

DENTES
O diastema (separação dos dentes) do consultor de recursos humanos Ary Itnem, 45, levou-o a usar aparelho pôr três anos. "Dava palestras e entrevistas na televisão e sempre achava que aquela separação não correspondia ao padrão. Cheguei a usar uma prótese para disfarçar. Mas, quando finalmente juntei os dentes, não me reconheci. Parecia um coelho. Fui ao dentista e pedi para desfazer. Estava me sentindo muito estranho daquele jeito", conta.
Hoje, com os dentes novamente separados, ele diz se sentir melhor. "Minha mãe tem diastema, meus filhos têm diastema. É uma característica da família. Meus dentes são assim. E, quando assumi isso, vi que os outros nem se preocupam tanto com a minha imagem quanto eu imaginava. A encanação era minha."

MARCAS DA VIDA
A professora de italiano Annita Franceschini Cassiano não revela a sua idade, mas diz se orgulhar das rugas que marcam seu rosto a cada vez que ela sorri. "Costumo dizer que envelheci sem querer", brinca.
"Não sei se sou bonita, o que sei é que me sinto bem. Fiz ginástica quando mais jovem, cuidei-me, sou feliz. Estou contente como sou e não gostaria de mudar meu rosto nem meu corpo. Está tudo muito bom assim."


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