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São Paulo, quinta-feira, 16 de outubro de 2003
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outras idéias - anna veronica mautner

Desde que nascemos, vamos introjetando o dever de funcionar na cadência geral. Isso leva à comparação e à inevitável competição

Tempo

À primeira vista, dá até para imaginar que a divisão do tempo é um dado da natureza. Nem percebemos que existem numerosos grupos humanos para os quais o tempo passa, mas ninguém o mede.
A idéia de que a divisão do tempo como a conhecemos é ditame da natureza nos foi empurrada goela abaixo desde nossas primeiras horas de vida. Nenê bom é o nenê que aprende a mamar de quatro em quatro horas. Quando chega aí, a família pode voltar a se organizar.
De tanto nos repetirem, de tanto nos condicionarem, acabamos funcionando como quem engoliu o relógio. Inteligência e saúde são medidas por cadências de tempo. Aprendizagem, digestão, sono têm ritmo certo para ocorrer. Praticamente tudo neste mundo é controlado por unidades de tempo. Na escola, esse controle é tão importante quanto o aprender ou até mais.
Ainda bem que ainda existem lugares onde o relógio não controla tudo, pelo menos para que possamos duvidar do que nos foi imposto sem que pudéssemos criticar.
Tudo começou no dia em que conheci uma angolana, ainda com um pé na sua tribo natal, pois só saíra de lá menos de dez anos antes. Silvina. Ela me acordou para esse ponto cego. "O tempo", disse-me ela, "é uma coisa boa porque nos faz prestar atenção à luz e à sombra". Falava de um tempo que não é o do relógio. Contou como estranhava nosso jeito de lidar com a passagem do tempo, especialmente porque tinha uma filha de oito anos.
Estivesse na sua terra, na selva angolana, tudo seria bem diferente. Observaria tranquilamente, sem fazer avaliações, a menina ir aprendendo a fazer coisas novas. Disse que nem lhe passaria pela cabeça associar essa coisa natural com tempo e esses dois com algum ideal de perfeição. A menina cresceria, como ela própria cresceu, sem prestar atenção ao fato de ir mais depressa ou mais devagar que as outras crianças.
Silvina estranhava a ditadura do relógio impondo a todos o mesmo ritmo impessoal de funcionar. "Aqui quem manda é o ponteiro do relógio. Temos de aprender juntos e sentir juntos como se fôssemos iguais. Por quê?"
A ditadura do relógio define a nossa relação com o mundo mais do que desejamos e imaginamos. Desde que nascemos, vamos introjetando o dever de funcionar na cadência geral. Isso leva à comparação ininterrupta e à consequente e inevitável competição: "Estou adiante, atrás ou emparelhado?". É sob uma eterna auto-observação que nossa auto-estima se constitui. "Quem acompanha os outros é bom", "Quem se adianta fica entre os melhores", "Quem se atrasa é menos".
Mesmo os adultos, quando começam a trabalhar sob o jugo do sino, sirene ou relógio de ponto, mostram, em poucos minutos de atividade, as diferenças entre si. A eficiência é medida passo a passo, ordena as relações entre as pessoas e dá origem aos estatutos das instituições. Só não ordena a natureza.
Desde o relógio de sol, passando pela ampulheta, até os primeiros relógios, o homem foi, pelos séculos afora, procurando precisão na medida do tempo. Submetendo-nos a esse tempo -social coletivo-, vemos acentuarem-se as diferenças individuais que geram hierarquias e pirâmides de poder.
O lema da lei do relógio é -nem demais nem de menos- "juntos". As consequências disso dispensam comentários.
A sociedade, os pais e os educadores modernos sonham em criar condições que conciliem criatividade, bem-estar, liberdade, pontualidade e eficiência. Será que dá?
A aliança -relógio e produção industrial- dir-se-ia que é orgânica. Não se conhece modernidade fora da ditadura do relógio. Diante disso, somos todos iguais, tudo depende do que conseguimos salvar de diferente, nosso, pessoal. Em geral, somos resultantes da interação com esse artefato mecânico-tecnológico que nós mesmos criamos há menos de mil anos.
Quem de nós ousa falar em eliminar o relógio se, em troca, tivermos que abdicar da anestesia, do antibiótico, da eletricidade e das leis de direitos humanos? Amamentar de quatro em quatro horas é bom, porque é o tempo que o seio leva para se encher de novo ou será que ele leva esse tempo porque também foi condicionado a isso? A relação relógio/natureza/vida social tornou-se um emaranhado em que é difícil perceber as relações de causa e efeito.
Soube que, neste ano, foi editado nos Estados Unidos um sem-número de livros que tratam desse tema: história do tempo, tempo no trabalho, tempo no lazer. Será que algo de novo vai aparecer entre o céu e a terra além do relógio que nos oprime?


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve aqui todo mês; e-mail: amautner@attglobal.net


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