São Paulo, quinta-feira, 17 de maio de 2001
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

outras idéias

Do escurinho de portão ao rendez-vous

ANNA VERONICA MAUTNER

Nos bairros e no interior, era no portão, nas sombras de figueiras e de castanheiras que as virgens se tornavam "demi-vierges". Era o amor sem penetração

Não imagine que eu passei a vida frequentando rendez-vous só porque vou descrever uns tantos com pseudofamiliaridade. Fui a alguns poucos, mas pedi ajuda a amigos e a romances.
Na França, rendez-vous é apenas um encontro. Para nós, é um lugar designado para o sexo. Hoje, ninguém mais usa essa expressão porque o motel praticamente ocupou o lugar dele. Não sei quem inventou o motel, mas sei que veio para substituir parcialmente os hotéis de alta rotatividade, onde "mulher direita" não podia entrar. Nesses lugares, ia o homem direito, porque o homem sempre é direito até prova em contrário, com a mulher que podia não ser prostituta, mas não era de todo o respeito.
Os rendez-vous eram lugares tristes. Lembro-me de um numa travessa da rua da Glória que subia para Santa Tereza e se chamava Lindóia. Era limpo, mas a água era de pingo, as toalhas nunca novas, e a roupa de cama quase esgarçando. Se o cavalheiro pudesse arcar com um gasto fixo a mais, ele alugava quarto em casa de viúva remediada. Prédio decente onde qualquer mulher podia entrar. (Imagino que não existam mais esses quartos para alugar. Imagino também como é que as velhinhas complementam seus orçamentos. Mas lembro que o quarto era do cavalheiro, e o apartamento, da mulher de idade.)
Se fossem mais ricos, alugavam uma kitchenette ou um quarto-e-sala, dependendo do temperamento, do estilo e do orçamento. Aqui, a qualidade do amor mudava. Podia ser amor juvenil ou dolorosas paixões impossíveis.
O motel é o endereço do amor liberado, onde se desvirgina a vizinha, se trepa com a cunhada, se namora a noiva e, às vezes, se comemoram bodas de prata ou de ouro entre espelhos e piscinas Jacuzzi. Nem se pode dizer que uma mulher se orgulhava de nunca ter estado num num rendez-vous. Hoje, confessar que nunca foi a um motel é quase confessar-se mal-amada. E assim muda o status do sexo, ao mesmo tempo em que muda o endereço dos ninhos de amor.
Nos bairros e no interior, era no portão ou nas sombras de figueiras e de castanheiras que as virgens se tornavam "demi-vierges". Era o amor sem penetração. Era quando o clitóris tinha sua dignidade. Nos bairros operários, os longuíssimos paredões beirando as estradas de trem foram paisagem de concepção de muitas criancinhas.
Não era simples escolher um rendez-vous (ou garçonière). Não podia ser um treme-treme, senão as senhoras de boa família temeriam ser vistas. A título de curiosidade, vou contar uma historinha: no bairro do Castelo (Rio), na frente da filosofia da Universidade do Brasil, havia um enorme quadrilátero de prédios que pegava quatro ruas. Num desses prédios, morava Manoel Bandeira, num pequeno apartamento. Sua cama era colocada de forma que enxergasse, permanentemente, o Pão de Açúcar. Já idoso, ficava deitado, escrevendo ou lendo sobre uma espécie de porta-bíblia que punha sobre sua barriga. Para não precisar levantar para abrir a porta, ele a deixava aberta. O apartamento diretamente ao lado do seu era um rendez-vous de três homens grandes, ricos e poderosos. E o danado do Bandeira, de sua cama, por anos, controlou essas vidas secretas. Uma das moças, que esperava sempre um eternamente atrasado, acabou tornando-se, temporariamente, musa inspiradora do nosso grande poeta.
Muda o sentido do amor enquanto mudam os endereços, e instaura-se uma certa forma de liberdade. Do portão, moita e paredão até bodas de ouro em motel não se passaram mais do que 40 anos. Mas ainda se faz amor no portão. O Lindóia ainda está lá. Só não sei se todas as velhinhas fazem seu bico tranquilo como faziam antigamente.


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, escreve aqui uma vez por mês, e-mail: amautner@attglobal.net




Texto Anterior: Peça rara: Grama na cadeira e peixinho de água quente
Próximo Texto: Outros rumos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.