São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2000
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'A competência está na cabeça, não na falta de visão'


A frase acima é de um deficiente que conquistou importante espaço no mercado de trabalho e, como muitos outros, exerce papel que contribui para o bem-estar da sociedade


Jayme de Carvalho/Folha Imagem
Sala de controle de segurança do hospital Albert Einstein; a equipe responsável pelo departamento é composta de 11 deficientes físicos


O sistema de aplicação de fundos do segundo maior banco privado do país, que tem um estoque de R$ 30,6 bilhões, é coordenado por um deficiente visual. Uma equipe de 11 deficientes físicos tem em suas mãos todo o monitoramento e controle da segurança do maior hospital da América Latina. E, se as cerca de 100 mil
pessoas que passam diariamente pela rua Boa Vista (antigo centro financeiro de São Paulo) percebem que as plantas estão vivas, as calçadas limpas e o lixo fora da vista, o crédito deve ser dado a um advogado que só se locomove em cadeira de rodas. Enfrentam as limitações impostas pela falta de visão ou pela dificuldade de locomoção, compensando a deficiência com rigor profissional pouco comum. Exercem funções importantes em grandes empresas, lidando direta ou indiretamente com a qualidade de vida de muitos cidadãos. "Há alguns profissionais deficientes que eu não troco por nenhum dos outros da segurança", diz Fabiano Ramim, chefe de segurança do hospital Albert Einstein. Os 11 que trabalham nesse departamento são o coração do hospital. Além de monitorarem todas as câmeras de vídeo espalhadas pelo prédio, é desse "quartel-general" que partem todas as ações para os mais diferentes problemas: de vazamento de água na pia do centro cirúrgico a princípio de incêndio. Estima-se que existam no Brasil mais de 16 milhões de deficientes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 10% da população dos países subdesenvolvidos é portadora de alguma deficiência. O número preciso só será conhecido após o Censo 2000 que, pela primeira vez, contará os deficientes do país. Em cidades violentas como São Paulo, onde as pessoas são expostas diariamente a situações de risco, como assaltos ou acidentes de trânsito, a porcentagem de deficientes pode ser maior do que calcula a OMS. "Todo paulistano é um portador em potencial", diz Flávia Cintra, 27, produtora do Teletom (campanha de arrecadação de fundos para construção de centros de reabilitação). Os deficientes ainda sofrem discriminação no mercado de trabalho, e as iniciativas a favor da sua inclusão ainda são tímidas. Destaque para o comerciante Jaime Gonçalo que abriu, neste ano, um posto de gasolina adaptado para que os oito funcionários abastecessem os carros a partir de suas cadeiras de rodas. Outras empresas já colocaram em prática programas para estimular a contratação de deficientes. Para Ana Beatriz Patricia, gerente-geral de recursos humanos do Itaú, desde que a deficiência não interfira no tipo de atividade, não há motivo para não contratar. "O critério para contratação é a eficiência. As vagas em funções como programador e analista de sistema são disputadas em igualdade de condições entre portadores de deficiência e pessoas sem problemas", diz. Tecnologia Parte dos empecilhos que impediam o deficiente de levar uma vida normal foram amenizados graças ao avanço tecnológico. A Internet é um exemplo. Com o ICQ (programa para troca de mensagens instantâneas), surdos podem se comunicar mais facilmente com ouvintes. Também existem softwares para que cegos possam operar micros e acessar a net. Roberto Almeida, 45, analista de sistemas e deficiente visual, controla o sistema de fundos do Itaú, lidando diariamente com R$ 30,6 bilhões. Quando entrou no banco, em 76, precisava de uma máquina de escrever em braile e de uma secretária para trabalhar. "Confiava no anjo da guarda", conta. Hoje, o Power Braile decodifica o que está sendo processado no computador. A tecnologia ajuda, mas deficientes e empregadores apontam as características individuais para explicar o bom desempenho. "Minha competência está na cabeça, no raciocínio lógico, e não na falta de visão. Não há nenhum gesto de caridade nem de filantropia na contratação", diz Almeida. Márcia Carvalhaes, coordenadora de imagem do Hospital do Câncer, diz que os quatro cegos que formam a equipe da câmara escura (revelação de filmes) identificam problemas no equipamento com 95% de acerto. "O resto, nem quem enxerga saberia resolver." "Nosso trabalho é tão ou mais perfeito porque não desviamos a atenção", diz José Alavarce. Lei ignorada Apesar de os deficientes terem sua capacidade de trabalho reconhecida em algumas organizações, faltam cursos profissionalizantes e acompanhamento psicossocial, sejam esses serviços públicos ou oferecidos pelas empresas. "Não adianta contratá-los sem ter um ambiente adequado. Os próprios empresários precisam estar preparados para receber os novos contratados", diz João Ribas, consultor de relações de trabalho.
Essa preparação já deveria ser realidade. Afinal, a lei que obriga a contratação de deficientes tem quase dez anos e esse tempo poderia ter sido aproveitado para qualificar uma geração de portadores de deficiência. Essa é a opinião é de Caio Leonardo Rodrigues, 36, advogado-sênior do escritório Pinheiro Neto e ex-presidente da Ação Local Boa Vista, que implementou a revitalização de parte do centro de São Paulo. "É hora de romper o silêncio, ir aos tribunais e processar as empresas que não cumprem a lei."


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