São Paulo, quinta-feira, 17 de agosto de 2000
Texto Anterior | Índice

A Idade do Placebo


É preferível gastar dinheiro com comida do que com médicos e remédios.
O problema é que os alimentos, além de caros, estão excessivamente ruins




Depois do trabalho, antes de chegar em casa, o homem moderno passa cada vez mais pela farmácia.
É inegável a existência de uma farmacomania em nossa época: somos uns compradores compulsivos de remédios e vitaminas. O indivíduo tende a tratar não de sua doença, mas de sua saúde. Quase não há médico que não receite vitamina para o doente tomar, sem a qual a consulta médica se tornaria inócua. Com isso esquecemos que as vitaminas se originam dos alimentos, assim como os sais e as calorias.
Boa saúde coletiva depende de uma boa agricultura. Todavia, com raras exceções, os médicos são leitores de bulas, prospectos e revistas de propaganda farmacêutica, desconhecendo inteiramente a composição dos alimentos, de modo que o esculápio moderno tem se tornado um boneco manipulado pelo aparato industrial-farmacêutico.
Um novo remédio é lançado por dia, o qual por sua vez não difere substancialmente do remédio antigo, a não ser pela embalagem. Quantos soníferos existem por aí que são o mesmo produto? E os cosméticos propagados pela indústria do cinema?
É preferível gastar dinheiro com comida do que com médicos e remédios. O problema é que os alimentos, além de caros, estão excessivamente ruins, adulterados e envenenados. A má qualidade dos alimentos é o fator responsável pelo fato de as farmácias estarem cheias de gente.
Receitar vitamina para gente pobre e desnutrida equivale a fazer propaganda da Coca-Cola em detrimento do leite ou da soja. O que o povo precisa é comer alimento bom e saudável. O problema fundamental do Brasil é o da saúde, ou seja, a alimentação de sua população.
O doente, a enfermeira e o médico encontram-se alienados e perdidos diante da propaganda dos fabricantes de remédios. É evidente que, se todos os remédios fossem abolidos, mesmo assim, o bom médico continuaria sendo bom médico.
O que existe atualmente é um interesse excessivo pelas enfermidades e os seus sofrimentos. Eis o lema hipocondríaco da nossa época: viver para se tratar. A morte está sendo produzida mais pelo tratamento do que pela própria doença.
A preocupação pelo aspecto preventivo das doenças tornou-se uma obsessão neurótica, conforme se verifica pela "cancerofobia". É por isso que volta à tona a reflexão sobre o placebo, palavra essa que designa o simulacro de medicamento, ou seja: imitação ou fingimento de remédio que é dado ao paciente como se fosse verdadeiro. O placebo não deixa de provocar efeitos surpreendentes de cura, o que mostra como é fortíssimo o poder da sugestão no ser humano.
A sugestão e a hipnose estão na base da criação da psicanálise, por mais que Freud, mais tarde, tenha abandonado a terapêutica hipnótica. Aliás, hoje em dia, a tendência é o retorno ao hipnotismo na medicina.
Há quem diga que, indicado por um bom médico, o placebo pode debelar dores físicas tanto quanto a morfina. De resto, bem considerando, a indústria farmacêutica não passa de uma indústria do placebo.


GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "O Príncipe da Moeda" (ed. Espaço e Tempo)




Texto Anterior: Outros rumos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.