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Outras idéias - Michael Kepp
Uma crônica pífia
Uma comparação da
forma como duas
culturas cortam bolos e laranjas dificilmente vira caviar literário. Prosa elegante pode dourar a pílula, mas nem palavras impecáveis podem transformar um assunto tão pífio em algo profundo ou até pertinente. Permita,
porém, que eu o leve nesse pedante passeio, para provar que
não vai chegar a lugar nenhum.
Os americanos cortam o bolo
geometricamente, em linhas
que partem do centro, formando fatias triangulares, em geral,
grandes demais. A porção gigantesca é uma tradição americana que explica por que a obesidade lá é epidêmica. Se a fatia
de bolo já é grande demais para
o apetite de muitos americanos, imagine as lixeiras em que
vão os restos.
Os brasileiros cortam o bolo
concentricamente, a partir de
uma incisão circular feita no
meio do bolo para criar o miolo.
Aí, fazem dois cortes quase paralelos, do miolo à borda, formando pedaços quase retangulares. Quando retirados, os pedaços não têm ponta para quebrar (como as fatias americanas). Essa miniporção desperdiça menos comida, um hábito
que explica por que a lata de lixo brasileira é do tamanho de
um balde. Se essas porções não
satisfizerem o apetite, os brasileiros comem outros pedaços.
O miolo, um bolo-dentro-do-bolo, também tem seu charme
estético, que lembra as "ma-
tryoshkas" russas -aquelas bonequinhas pintadas com gêmeas menores dentro.
Esse corte de bolo, comum
em toda a América do Sul, é
perfeito para aniversários de
crianças nesta parte do mundo.
Em países latinos, onde a ligação com vários ramos da família é forte, essas festas são uma
desculpa para reunir um grande número de convidados
-amigos do aniversariante, da
família e parentes. Isso exige
que o bolo grande seja dividido
em pequenos pedaços. Nos Estados Unidos, onde a ligação
com a parentada é fraca, os aniversários de crianças são só para crianças. O número menor
de convidados permite que o
bolo seja cortado em fatias
triangulares maiores.
Os americanos também cortam laranjas geometricamente,
dividindo-as em quatro fatias,
enquanto muitos brasileiros
descascam toda a laranja, cortam no meio e chupam o suco.
Os americanos nunca chupam laranja. Para extrair o caldo, usam o espremedor. O hábito americano de usar a máquina para transformar fruta em
suco pode explicar por que um
amigo americano que nos visitou disse "que exótico!" ao ver
minha mulher, brasileira, macerar uma manga, transformando a polpa em caldo, que
ela chupou por um buraco mordido na casca.
Se essas comparações fazem
parecer que este cronista está
enrolando, posso renovar sua
confiança, oferecendo minha
resolução de fim de ano: nunca
mais escrever uma crônica tão
pífia ou, usando uma clássica
fanfarra literária brasileira,
uma crônica cujo assunto é a
falta de assunto.
MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de
crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e
Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)
www.michaelkepp.com.br
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