São Paulo, quinta-feira, 18 de janeiro de 2007
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Outras idéias - Michael Kepp

Uma crônica pífia

Uma comparação da forma como duas culturas cortam bolos e laranjas dificilmente vira caviar literário. Prosa elegante pode dourar a pílula, mas nem palavras impecáveis podem transformar um assunto tão pífio em algo profundo ou até pertinente. Permita, porém, que eu o leve nesse pedante passeio, para provar que não vai chegar a lugar nenhum. Os americanos cortam o bolo geometricamente, em linhas que partem do centro, formando fatias triangulares, em geral, grandes demais. A porção gigantesca é uma tradição americana que explica por que a obesidade lá é epidêmica. Se a fatia de bolo já é grande demais para o apetite de muitos americanos, imagine as lixeiras em que vão os restos.
Os brasileiros cortam o bolo concentricamente, a partir de uma incisão circular feita no meio do bolo para criar o miolo. Aí, fazem dois cortes quase paralelos, do miolo à borda, formando pedaços quase retangulares. Quando retirados, os pedaços não têm ponta para quebrar (como as fatias americanas). Essa miniporção desperdiça menos comida, um hábito que explica por que a lata de lixo brasileira é do tamanho de um balde. Se essas porções não satisfizerem o apetite, os brasileiros comem outros pedaços. O miolo, um bolo-dentro-do-bolo, também tem seu charme estético, que lembra as "ma- tryoshkas" russas -aquelas bonequinhas pintadas com gêmeas menores dentro. Esse corte de bolo, comum em toda a América do Sul, é perfeito para aniversários de crianças nesta parte do mundo.
Em países latinos, onde a ligação com vários ramos da família é forte, essas festas são uma desculpa para reunir um grande número de convidados -amigos do aniversariante, da família e parentes. Isso exige que o bolo grande seja dividido em pequenos pedaços. Nos Estados Unidos, onde a ligação com a parentada é fraca, os aniversários de crianças são só para crianças. O número menor de convidados permite que o bolo seja cortado em fatias triangulares maiores.
Os americanos também cortam laranjas geometricamente, dividindo-as em quatro fatias, enquanto muitos brasileiros descascam toda a laranja, cortam no meio e chupam o suco. Os americanos nunca chupam laranja. Para extrair o caldo, usam o espremedor. O hábito americano de usar a máquina para transformar fruta em suco pode explicar por que um amigo americano que nos visitou disse "que exótico!" ao ver minha mulher, brasileira, macerar uma manga, transformando a polpa em caldo, que ela chupou por um buraco mordido na casca.
Se essas comparações fazem parecer que este cronista está enrolando, posso renovar sua confiança, oferecendo minha resolução de fim de ano: nunca mais escrever uma crônica tão pífia ou, usando uma clássica fanfarra literária brasileira, uma crônica cujo assunto é a falta de assunto.


MICHAEL KEPP, jornalista norte-americano radicado há 25 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record)

www.michaelkepp.com.br

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