São Paulo, quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
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OUTRAS IDEIAS

Anna Veronica Mautner

Dar satisfação é bom?


[...] O CAMINHO ENTRE O EMPREGO E A CASA, O ESPAÇO DO TRÂNSITO, EM GERAL É O ÚNICO LUGAR ONDE NINGUÉM DEVE NADA A NINGUÉM

Como seria viver sem nunca ter de dar satisfações a ninguém? Seria ninguém precisar de você e você não precisar de ninguém. Um grande vazio. No entanto, esse é o lema que, por hipótese, quando realizado, torna a pessoa feliz.
A expressão "dar satisfação" não tem uma acepção única: pode ser agradar, mas fica mais forte quando mesclada com o sentido de ter de se explicar.
Será que todos se sentem oprimidos quando dar explicações ou agradar parecem ser condição de estabilidade das relações impessoais? De fato, se, para manter o vínculo de trabalho ou de família, tenho de me explicar ou agradar, meu sentido de liberdade é contaminado.
Acredito que, às vezes, uma funcionária gostaria de evitar o transtorno de, na hora do rush, se locomover do emprego até sua casa. Ela até gostaria de dormir no seu local de trabalho, mas isso significaria confessar que não precisa do seu tempo livre. Faz parte do amor próprio ter vida própria. Fingir que tem é, muitas vezes, uma necessidade de autoestima.
Desempenhar apenas um papel social identificatório equivale a um sinal de vazio. Além de a identidade das pessoas estar associada a fazer, a ser, para se sentir bem é preciso participar de atividades descompromissadas, em que não seja necessário dar explicações ou agradar, o que comumente se chama de hobby.
Para muitas pessoas, o caminho entre o emprego e a casa, esse terrível espaço da condução ou do trânsito, em geral é o único lugar onde ninguém deve nada a ninguém. Esse lugar de trânsito é o verdadeiro espaço público. É horrível morar longe, são quase desumanas as condições pelas quais se passa entre ir e vir. Mas é um espaço de liberdade.
A praça, a esquina, o boteco são espaços oficialmente livres para os homens. Para as mulheres, fora os lugares do cuidado de si, não foram providenciados muitos espaços públicos. O telefone é o recurso de contato descompromissado, substituiu a conversa de portão de antigamente. Lugar/tempo onde ninguém dá ou deve satisfação a ninguém só mesmo a caminho.
Ai de quem não dispõe desse caminho, como se sente mal! A ideologia da liberdade exige que se tenha relações sem precisar dar satisfações a ninguém. Mas isso não pode ser em tempo integral. A falta de cerceamento pode ser sentida como abandono. É preciso também ter gente, patrão, marido, filho, amigo, para quem, sim, se deva satisfações.
Conheço gente, em especial uma pessoa, que mente, omite, sem a menor necessidade, só para fingir que está evitando dar satisfação. Trata-se de uma órfã, solteira, sem filhos e sem casa, que deveria dormir no trabalho, mas vai dormir no chão do quarto de uma amiga empregada. Finge se esquivar de quem lhe pediria satisfação só para fazer de conta que tem para onde ir, que o refúgio existe.
Pena que não haja ninguém para contestar o fato de ela fugir! Equilibrar-se na tênue linha de ter de dar satisfações para manter relacionamentos é arte necessária ao bem viver.


ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)

amautner@uol.com.br


Leia na próxima semana a coluna de Wilson Jacob Filho


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