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outras idéias
Pátria amada
Ser patriota vem caindo cada vez mais em desuso, e não é por causa de globalização ou de internacionalismo. Alguma outra coisa ocorre que não nos permite esse sentimento organizador
anna veronica mautner
Saibam, senhores e senhoras, que ser patriota não é a mesma coisa que
ser um torcedor. Neste começo de século 21, quando a palavra de ordem, nacional ou internacional, é "Não excluirás", poderíamos até
imaginar que patriotas e torcidas fossem a mesma coisa. Tudo bem, concedo, ambos falam de pertinência. "Sou do Palmeiras." "Sou brasileiro." Patriotas e torcedores cerram fileiras em torno de algum denominador comum.
Mas a dinâmica mental do torcedor é muito diferente daquela que ocorre
no mundo interno do patriota. Torcedor fala de vitória, fala de ser melhor.
Torce para que sua grei seja vencedora. É verdade que o cheiro de disputa,
guerra que seja, exacerba o sentimento de pertinência a uma nação constituída sobre uma terra que tem palmeiras, cachoeiras e outras tantas características. Mas o patriotismo pode estar presente sem a guerra. Pode ser enaltecido,
pode levar ao gozo supremo de um estado de ânimo difuso e pleno que nos
informa que somos, não apenas estamos. Que bom que a nossa língua, a portuguesa/brasileira, nos dá esta facilidade de distinguir o ser do estar.
Ser patriota vem caindo cada vez mais em desuso, e não é por causa de globalização ou de internacionalismo. Alguma outra coisa ocorre que não nos
permite esse sentimento organizador. Pode ter sido influência do último século, quando, em nome da pátria, se matou tanto tão longamente. Maria
Adelaide Amaral e Alcides Nogueira conseguiram o milagre da ressurreição
do sentimento de "pertinência a um povo" -ou do patriotismo. Três ou
quatro vezes por semana, bem tarde da noite, a Globo transmite "Um Só Coração", que nos leva, em certos momentos, a verdadeiras evocações do tempo em que ser patriota não era vexame nem politicamente incorreto. Bem
tarde da noite, quase sempre sozinhos, sentimos estufar o peito de orgulho
de viver em São Paulo, herdeiros da Revolução Anarquista de 24 e da Constitucionalista de 32. Como quem não quer nada, os autores atrelam à fé revolucionária a possibilidade de inclusão de todos os habitantes desta cidade que
recebe migrantes desde o início do século 20. Em certos momentos, os patriotas tornam-se torcedores -quando vibram, gritam e constroem estrofes
cadenciadas de enaltecimento à causa.
O patriota paulista de Maria Adelaide e Alcides é um brasileiro. E é para todo o Brasil que clama que seja feita uma Constituição. Cenas que poderiam
ser pueris ganham peso quando recitadas em paulistês. É o credo religioso
que ganha novas palavras: "Creio em São Paulo e na Constituição...". Vibra a
corda certa do coração quando outros arremedos de poesia pátria esbarram
com o sagrado.
Que talento esses dois autores, que não são de metrópole, ela é da Mooca,
bairro tradicional de São Paulo, e ele, de Botucatu, que mostram, conseguindo, nestes tempos ideológicos, exaltar cordas completamente emocionais escondidas, em total desuso. Vibrando essas cordas, surge a necessidade de irmanar-se. Diante das 13 listas, caem (temporariamente, é claro) as barreiras
nacionais, regionais, raciais. Depois, é claro, bem o sabemos, as diferenças, os
preconceitos voltam. Mas voltam diferentes porque também não se apaga da
memória essa emoção profunda de que somos todos seres humanos capazes
de acreditar. Dirão os céticos, capazes de se iludir. Mas não importa. É preciso resgatar a idéia de que somos capazes, em dadas circunstâncias, de esquecer diferenças. Assistindo a certos capítulos de "Um Só Coração", a corda do
patriotismo vibrou. Fazia muito tempo que não era tocada. Orgulho coletivo,
fé em algum social coletivo. Som de união. Som de somos.
No tempo em que Mooca era Mooca, Lapa era Lapa, Santana era Santana,
nós tínhamos, em miniatura, essa sensação de não estar só. Quando voltaram os expedicionários, nas "Diretas Já" e nos últimos tempos, não me lembro de ter sentido o júbilo de
estar entre iguais. Obrigada
a quem inoculou nos autores a idéia de tirar do baú o
orgulho de ser, sobrepujando o saber, ter, parecer etc.
De vez em quando, é preciso
poder mergulhar nessa sensação de que todos nós fazemos um todo.
Lembro-me ainda do dia
em que João Paulo 2º rezou
uma missa campal em São
Paulo. Mesmo não sendo
católica, mesmo sendo agnóstica, senti. Tem hora de
sentir porque senão a razão
nos leva para caminhos errados. E isso não é raro.
ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira
de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (editora Ágora), escreve
aqui uma vez por mês; e-mail:
amautner@uol.com.br
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