São Paulo, quinta-feira, 18 de maio de 2006
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

Procura-se moradia com mãe para adultos solitários

Aos que sonham com um lar onde os serviços são eficientes, afetivos e nada autoritários. Nós, solteiros ou recém-casados, nômades, sedentários ou apenas solitários, aqui estamos à procura da moradia dos nossos sonhos. Queremos convívio familiar com liberdade e autonomia ou mordomia de hotel sem cobrança ou autoritarismo. Afinal, o que queremos? Queremos reencontrar a velha pensão de nossas avós em novas roupagens, com suítes e área de lazer. Isto é, com banheiro privativo e sala de estar com freqüência voluntária e com reserva de privacidade.


Estamos à caça do clima da velha e boa pensão, onde cada um tinha o seu espaço e os serviços que tinha em casa, sem a presença da família


Esse lugar dos sonhos ainda não renasceu, mas acho que está chegando a hora. Soube pelos jornais que aumenta a procura de imóveis onde pelo menos alguns pedaços da nossa utopia são oferecidos. Flats, hotéis residenciais e mesmo alguns condomínios procuram se aproximar de nosso sonho. Estamos à caça do clima da velha e boa pensão, onde cada um tinha o seu espaço e os serviços que tinha em casa, sem o ônus da presença da família. Antigamente, os recém-chegados a uma cidade procuravam uma pensão recomendada por amigos. Essa instituição não existe mais. As grandes casas que as abrigavam são cada vez mais raras, além de não disporem daquela que é a exigência essencial e insubstituível do homem moderno: o banheiro particular. Por essas e outras, vamos ficando com os flats ou os "residences", que ainda não atendem a todos os nossos desejos.
Certas exigências de contemporaneidade estão latentes, mas ainda sem solução. Falta um toque pessoal que uma dona-de-casa, com um olhar afetivo, mas jamais autoritário, imprima ao local. Mas telefones, serviços de recado, office-boys e banda larga são indispensáveis.
A vida das pessoas ou dos casais sem filhos pode ser muito mais econômica numa solução estilo "pensão moderna". Antigamente, quando os filhos se casavam e a viuvez chegava, as senhoras evitavam a solidão e ainda ganhavam dinheiro alugando quartos para "pessoas de fino trato". Não havia viúva morando em imóvel grande que não alugasse seus quartos vazios para viajantes, estudantes, juízes, professores de passagem etc. Além de as mansões terem rareado, a exigência da liberdade sexual também precipitou o fim da pensão de família, onde namorado, amados e amantes não passavam da sala de estar. Para tanto, os homens bem de vida alugavam, com amigos, quartos da casa de outras senhoras, diferentes, que permitiam amores clandestinos. Ali, fornecia-se roupa branca limpa e perfumada. Só que essas não eram casas de família nem pensões, não tinham nome, tinham algo de clandestinas. Um exemplo muito bom de pensão foi descrito na minissérie "JK", a pensão da Baronesa, em que quase todos os solteiros moravam na década de 50. Ela dava aos seus hóspedes um algo a mais que a minissérie mostrou muito bem: convívio afetivo voluntário, sem autoritarismo ou cobrança. Quem quer ficar no quarto fica. Não se pergunta de onde veio e para onde vai, enquanto a dona da pensão fica como uma nuvem circulando, vigiando sem implicar. Ela deve ser um tipo de mãe de filho adulto, não mãe de adolescente a ser protegido e orientado. Essa instituição não oferecia tecnologias coletivas, como telefone, máquinas de escrever, serviço de recado ou entrega, mas tinha aconchego e carinho. Em geral, o pagamento mensal das pensões incluía refeições bem caseiras, o que também resultava numa economia mensal.
Falando agora para as administradoras ou construtoras que planejam essas novas modalidades de moradia, eu diria: não se esqueçam de que área de convívio não é a mesma coisa que sala de lazer/ginástica -aí não há convívio, e sim "soli-vívio" ou "uni-vívio". Pode não ser fácil achar essas rainhas-mães. Caberá a elas dar aquele toque que contribuirá para a ilusão de um espírito de família, já que queremos nos sentir em nossa casa, mas também queremos tudo o mais que a modernidade nos dá. Não queremos perder a liberdade de ir e vir, mas exigimos respeito à privacidade num clima de aconchego.
Portanto: procura-se moradia com mãe para dar aconchego a adultos solitários, com serviço de apoio (como entrega e e-mail) e tudo o mais que a modernidade pede.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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