São Paulo, quinta-feira, 18 de outubro de 2001
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outras idéias

Viagem é uma espécie de recheio. O pão é o nosso cotidiano, e o tempo passado fora pode ser peru ou mortadela. Ir a lugares desconhecidos e distantes figura, hoje, como uma necessidade de vida

Viajar é um dever que cumprimos alegremente

Anna Veronica Mautner

Já vai longe o tempo em que dar a volta ao mundo levava 80 dias. Hoje, dois dias é o suficiente. O velho prazer de viajar para se desligar do cotidiano, para ver e conhecer novos mundos, tornou-se um dever. Ir até o Rio, na década de 40, era uma longa viagem. Para o Norte e para o Nordeste, só mesmo de navio costeiro. Sair do Brasil era empreitada de semanas ou meses.
Na minha rua de lojistas de classe média, só uma pessoa empreendeu, naquela época, a aventura de ir até o Rio. Ela, Odete, foi de trem da Central e voltou um mês depois cheia de fotos em preto-e-branco que ia nos mostrando enquanto nós imaginávamos o colorido das paisagens. Virou pessoa importante lá na rua.
Gente mais rica viajava mais, contudo para lugares distantes não iam mais do que algumas poucas vezes em toda uma vida.
Naquele tempo, viajar era coisa séria. Lembro-me dos primeiros Constelations nos quais se embarcava de forma solene: homens de terno e chapéu, mulheres de "tailleur", chapéu e luva. Conforme os meios de transporte se aperfeiçoaram, as viagens tornaram-se mais frequentes e comuns. O direito ao livre ir e vir foi-se transformando em dever, até que hoje nunca ter viajado é desdouro.
A rotina de nosso dia-a-dia nos pesa, e é por isso que estamos sempre à cata de aventuras de liberdade e autonomia que só nas viagens encontramos. Em trânsito, nós nos sentimos mais donos de nosso cotidiano. Alguns procuram surpresas, outros planejam tintim por tintim cada dia das férias, mas todos encontram, distantes do cotidiano, um alento para continuar, na volta, o ramerrão habitual.
Podemos fazer os planos sozinhos; podemos pedir ajuda à internet, a guias ou mesmo a agentes de viagem. Não importa como: férias são sempre uma ruptura nos hábitos e uma captura de graus de liberdade.
Transformadas em mercadoria vendida pelas agências e operadoras de viagens, as férias ganham novas funções, bem longe da mera quebra da rotina. "Carreira e emprego são bons quando prometem viagens. Currículo interessante é o que enumera estadas, cursos e aperfeiçoamento no exterior." Jovens mimados pela vida e pelas famílias topam lavar louça em restaurantes ou fazer faxina só para prolongar suas aventuras em terras estranhas.
Desde tempos imemoriais até hoje, quando o viajante volta para casa, não importa o tempo que tenha ficado fora, aparece investido das funções de narrador. Esse contador de história é o curioso que observou, anotou, fotografou, filmou para melhor ilustrar suas histórias.
Essa história não é contada como antigamente, com começo, meio e fim. tal qual a de minha vizinha ao voltar do Rio.
A comida, os alojamentos, as manhas dos motoristas de táxi, a descrição da pobreza e da riqueza vão entrando, sem pedir licença, na trama das conversas jogadas fora. Contamos fazendo de conta que perambular pelo mundo é trivial em nossas vidas.
Ai de quem não tem nada para contar! Pobre pessoa que não conhece o exterior da pátria amada ou pelo menos da cidade natal. E se nunca viu o mar nem andou de avião!
Viagem é uma espécie de recheio. O pão é o nosso cotidiano, e o tempo passado fora pode ser peru ou mortadela. Ir a lugares desconhecidos e distantes figura, hoje, como uma necessidade de vida. Além de linha no currículo profissional, é condição de participação em turmas e patotas.
E assim o direito de ir e vir, tornado obrigação pela mídia e pela indústria de turismo, encontra-nos prontos para cumprir o exigido com muito prazer. Nunca ter viajado, do ponto de vista da sociabilidade, é pior do que um jovem não saber dançar.
Sempre existiram e continuam existindo pessoas que não viajam, até mesmo dentro de uma certa elite. Machado de Assis, Mário de Andrade, Ariano Suassuna nunca foram conhecer o resto do mundo, apesar de terem viajado exaustivamente pelo Brasil. E nem por isso lhes faltou assunto para escrever.
Viajar é sonhar? Pode-se sonhar sem viajar?


ANNA VERONICA MAUTNER, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Crônicas Científicas" (ed. Escuta), escreve aqui uma vez por mês,



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