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São Paulo, quinta-feira, 18 de dezembro de 2003
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OUTRAS IDÉIAS

Michael Kepp

Etiqueta telefônica brasileira

Levo dez minutos para me despedir de todos. Mas tenho de avisar minha mulher meia hora antes de eu querer ir embora para que ela comece a se despedir

A pesar de viver aqui há 20 anos, não consigo dominar a tal etiqueta telefônica que chamo de "despedida esticada brasileira". Quer dizer, recitar uma cornucópia de preâmbulos antes de a palavra de encerramento -"Tchau"- deixar os meus lábios.
Minha esposa brasileira começa sua "despedida esticada" dizendo, a intervalos regulares, frases como "Então, tá", "Tá bom" ou "Tá legal" para que a outra pessoa note que ela está ficando sem papo. Esses sinais, se ignorados, encolhem-se em uma interminável procissão de "Tás". Quando se cansa de dizer "Tá", ela acrescenta um "Tenho de ir", mas geralmente explica por quê, o que pode esticar o papo um bocado.
Geralmente, "Tenho de ir" é seguido de "A gente se fala", sinal de que o tempo acabou. Mas, de vez em quando, dizer "A gente se fala" pode levar minha mulher ou a outra pessoa a lembrar algo que queriam dizer, o que pode dar início a um novo assunto. Só depois que o novo assunto se esgota, os "Então tás" recomeçam, afinando em uma fila de "Tás", seguida por um segundo "A gente se fala" e culminando no "Tchau".
Por ser americano, modelo da eficiência "tempo é dinheiro", termino as ligações com apenas dois preâmbulos: "Tenho de ir" e "A gente se fala", antes de dizer "Tchau". Apesar de as minhas despedidas curtas surpreenderem estranhos de vez em quando, meus amigos brasileiros não se importam porque entendem que venho de uma cultura "mais objetiva", o que é um eufemismo para "curta e grossa".
Não sendo um "homem cordial brasileiro", mesmo em festas só levo dez minutos para me despedir de todos. Mas tenho de avisar minha mulher meia hora antes de eu querer ir embora para que ela comece a se despedir. E, mesmo assim, ela ignora o aviso.
Brasileiros não são, em minha opinião, craques em etiqueta ao telefone. Quando saio com amigos brasileiros, alguns têm o hábito irritante de atender (ou mesmo fazer) ligações ao celular e falar -quase sempre de coisas que podem esperar até chegar em casa- enquanto eu olho para o nada. No caso do celular, as despedidas são (como as minhas) curtas e grossas, porque a ligação é cara.
Alguns brasileiros -como recepcionistas, secretárias ou atendentes de companhias aéreas- atendem ao telefone dizendo "Um minutinho", mas me deixam esperando "ad infinitum". De vez em quando, um brasileiro -geralmente um homem com o número de telefone errado- liga e pergunta rispidamente "Quem está falando?", como se fosse minha obrigação lhe dizer.
Apesar de minhas despedidas telefônicas curtas, meu "Alô" tipicamente americano é bem mais cortês do que o similar nacional. Quando um estranho liga, querendo falar com minha mulher, que não está, eu digo: "Ela não está. Quer deixar um recado?". Mas, quando eu ligo e peço para falar com alguém (em casa ou no trabalho), o brasileiro que atende ao telefone primeiro pergunta "Quem quer falar?" antes de me dizer se a pessoa está -uma técnica de filtrar ligações que considero tão desnecessária quanto desagradável.
Talvez os brasileiros peneirem as ligações assim porque vêem a casa e o escritório como lugares em que ninguém de fora da família/empresa pode entrar (mesmo que seja via telefone) sem revelar sua identidade. Esse jeito desconfiado não é reflexo dessa sociedade cada vez mais perigosa, mas é peculiar a esse povo. Pelo que eu me lembre, os brasileiros sempre atenderam ao telefone assim.
Eu confesso que poderia tornar minhas despedidas telefônicas de brasileiros mais cordiais, sendo menos "curto e grosso". Mas não há dúvida de que os brasileiros só vão dominar a arte da cordialidade ao atender ao telefone quando ficarem menos desconfiados.


Michael Kepp, jornalista americano radicado há 20 anos no Brasil, é autor do livro de crônicas "Sonhando com Sotaque - Confissões e Desabafos de um Gringo Brasileiro" (ed. Record); site: www.michaelkepp.com.br


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