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Os poderes da criação
Caio Guatelli/Folha Imagem
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A aluna Soraya Ferreira Silva, 25, trabalha com cerâmica na escola Olaria Paulistana, em São Paulo |
Explorar a capacidade de realização das mãos pode trazer mais benefícios que satisfação pessoal ou profissional
MARCOS DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
Para o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), a mão era a "ferramenta das
ferramentas". Mas pode ter sido justamente essa habilidade de criar instrumentos cada vez mais complexos que acabou deixando para a mão somente as tarefas mais mecânicas. O poder criativo de transformar a realidade, de dar vida a
objetos, foi se tornando cada vez mais raro nas grandes cidades e, no ideário consumista, as mãos livres -e os seus respectivos polegares opositores, uma das diferenças evolutivas mais importantes entre o homem e o restante dos animais- foram relegadas a apertar botões, passar o cartão
no caixa do banco eletrônico, contar o dinheiro, pagar e levar.
Mas, segundo psiquiatras, terapeutas, neurologistas e artesãos, o poder de criação e realização das mãos tem papel fundamental na recuperação da auto-estima e do bem-estar e
traz resultados positivos para o aumento da
capacidade de concentração e de planejamento de quem as usa.
"O homem de hoje está mais acostumado a
desejar e escolher (ou ordenar) do que a imaginar e realizar", diz a psiquiatra Anna Veronica Mautner, colunista do Equilíbrio, que, no
recente artigo "A violência, a mão e o polegar"
(ed. 5/8), escreveu sobre a importância de atividades que valorizam o uso da mão. "Não
quero dizer que a pessoa tenha de ser artista,
mas atos cotidianos como fritar um ovo do jeito que você gosta, com a gema dura ou mole, já
dá uma sensação de bem-estar. O fato de realizar algo eleva a auto-estima", diz a psiquiatra.
"O barro me ensinou a ter paciência. Ele tem
um tempo próprio. É preciso esperar para secar, tem a primeira queima e, às vezes, a peça
quebra porque fica com ar dentro. Aprendi a
baixar o meu nível de cobrança, não existe o
certo e o errado quando você está criando", diz
a professora de inglês Marília Tardin, 44.
Marília procurou as aulas de cerâmica "como terapia" depois de um tratamento de saúde
que a fez se afastar do trabalho. "Lá eu consigo
me desligar dos problemas", diz.
Como ela, muitas pessoas procuram uma
atividade manual para aliviar as tensões do
dia-a-dia. É o que diz Lucia Eid, 43, ceramista e
proprietária da escola Olaria Paulistana (na Vila Madalena, em São Paulo), onde Marília é
aluna. "As pessoas chegam aqui com uma carga de ansiedade muito grande, mas, com o
tempo, elas vão se soltando e se transformando."
Lucia também passou por uma metamorfose
na vida: em 1998, vendeu o parque de diversões
no qual comandava 250 funcionários e resolveu se dedicar mais à família e ao seu hobby.
"Comprei um forno e instalei-o na varanda do
meu apartamento. Fiquei alucinada, cheguei a
fazer mil peças para uma loja. Foi quando resolvi abrir uma escola e uma loja."
Sem estresse e com mais memória
O psicólogo e psicomotricista André Trindade
acredita na importância de "refuncionalizar as
mãos". "Na maior parte das vezes, usamos a
mão mecanicamente, sem prestar atenção",
diz. Segundo Trindade, formado na Bélgica, a
melhor maneira de mudar isso é, literalmente,
meter a mão na massa. "No exercício de atividades como trabalhar com cerâmica, a função
da mão não é mecânica, você se reconhece o
tempo todo", afirma.
A dona-de-casa Golda Soriano, 62, estava se
sentindo só e desocupada depois que os seus filhos saíram de casa. E foi Alexis, sua neta de 12
anos, com o desejo de aprender a costurar, que
a despertou para as atividades manuais criativas depois de 30 anos longe delas. Golda começou a ensinar Alexis a costurar, a pregar botão
e a fazer tricô. "É como andar de bicicleta, a
gente não esquece", diz Golda, que aprendeu a
usar as mãos no colégio. "As meninas aprendiam a bordar e os meninos, marcenaria. Era
uma matéria normal, como latim", lembra.
"Uma pessoa pode ter uma dificuldade com
memorização de histórias, não lembrar o que
aconteceu ontem. Mas se ela aprendeu a bater
um prego na parede, não vai esquecer. Você
não esquece algo que aprendeu a fazer com o
corpo", afirma o neurologista João Radvany,
do hospital Albert Einstein.
O neurologista explica que as mãos, ao lado
dos olhos e da boca, são as partes do corpo que
têm maior representação no córtex cerebral.
"E quanto mais o homem usa esses órgãos,
mais essas áreas cerebrais se expandem", diz.
De acordo com Radvany, as atividades manuais são usadas no tratamento de pacientes
com dificuldade de planejamento e em disfunções de memória, por exemplo.
"Esse tipo de atividade também é utilizada
em tratamentos com idosos e pacientes com
mal de Alzheimer", diz o pesquisador Ivan Izquierdo, do Centro da Memória do Departamento de Bioquímica da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul.
O prazer do tato
"Não é pelo dinheiro, é
pelo prazer e pela necessidade de estar em contato com a terra. Gosto de trabalhar na terra
com as mãos, de ficar com o joelho sujo, cavoucar. É quando eu sou eu mesma, estou inteira ali. Me sinto conectada com o mundo e
comigo mesma. Me sinto viva", afirma a farmacêutica e bioquímica de formação, Angela
Scheepstra-Wenzel, 50. Ela pegou gosto pelas
atividades manuais quando foi morar na Holanda com o marido. "Uma vizinha me ensinou a fazer bonecas de pano", diz.
Mas sua grande paixão eram mesmo as plantas e, ao voltar ao Brasil, há cerca de dez anos,
escolheu uma casa com jardim para morar.
Suas plantas acabaram chamando a atenção da
vizinhança e um amigo lhe chamou para trabalhar em seu jardim. "É muito bom quando as
pessoas reparam no trabalho que você fez. É
bom para o ego", diz Angela, que, há três anos,
trabalha como paisagista.
De acordo com a neuropsicóloga Anita Taub,
a mudança de foco de atividades abstratas e intelectuais para ações concretas e objetivas provoca estímulos diferentes no cérebro. Segundo
ela, pessoas que desenvolvem um trabalho intelectual durante muitas horas e com uma sobrecarga de informação utilizam um certo tipo
de função cerebral, como o raciocínio e a memória. Ao mudar a atenção para as mãos, elas
ativam outras partes do cérebro.
"Por que pedimos para um paciente com dor
apertar uma bolinha? Ele desfoca a atenção para mão. A dor sai da área cognitiva e passa para
a motora e ele pára de pensar que está com
dor", exemplifica Anita, que indica trabalhos
de habilidade manual para pacientes angustiados e ansiosos.
Para além de toda a função terapêutica, o
simples prazer de trabalhar com as mãos já é o
bastante para aquela tia que não larga o tricô, o
marido que não sai da oficina de marcenaria
por nada, a mulher que passa horas mexendo a
terra no jardim. E a satisfação pessoal é tanta
que o hobby torna-se profissão.
Profissional com as mãos
O empresário
Alexandre Bacellar, 47, largou sua confecção de
roupas, depois de 20 anos, para virar pizzaiolo.
Bacellar é o típico "papai sabe tudo": gosta de
fazer coisas em casa, desde instalar a antena de
televisão no telhado até construir carrinhos para o filho. "Sempre fui assim. Quando eu era
criança, fazia pipas e vendia na feira. Durante a
faculdade de economia, produzia sapatos de
camurça para vender aos amigos. Com o dinheiro comprei minha primeira moto", diz.
Dez anos atrás, Bacellar montou um forno de
assar pizzas no quintal para receber os amigos.
"A primeira massa ficou horrorosa. Nunca
imaginei que teria uma pizzaria como negócio", diz. Mas as "pizzadas" -em que ele mesmo era o chef-pizzaiolo- foram ficando mais
freqüentadas e Bacellar resolveu abrir seu restaurante em Santana do Parnaíba, na região
metropolitana de São Paulo, o Bendita Hora.
Mesmo depois de abrir uma filial na capital,
ele continua com o avental de pizzaiolo no corpo -além de ter feito, com as próprias mãos,
toda a reforma do imóvel com material comprado em ferro-velho. "Estou sempre com a
mão na massa. E tento passar esse modo artesanal de fazer pizzas para os meus funcionários. As coisas só acontecem se são feitas com
carinho."
Esse caráter prazeroso das atividades manuais também levou o empresário José Pillon,
45, a largar uma rede de lojas de roupas para se
dedicar à marcenaria, sua atividade de lazer
preferida. "Sem dúvida nenhuma, a parte mais
gostosa é o trabalho da marcenaria em si. Há
muito para se olhar numa pequena peça de
madeira, seguir o veio com as mãos. Sempre
vejo as pessoas passando a mão nas peças",
afirma o marceneiro, que aprendeu o ofício
com o pai.
"Meu avô também era marceneiro e o meu
pai era médico. Juntei as duas coisas e virei um
ortopedista", brinca o médico Antonio Carlos da Costa, que é chefe da equipe de microcirurgias da Santa Casa de São Paulo. Cirurgião-ortopedista especializado em mãos,
Costa lembra que, quando criança, não saia
da oficina do avô e sabe que o que aprendeu
ali faz dele um profissional melhor.
"O nosso trabalho precisa muito da destreza das mãos. Às vezes, temos de dar oito pontos numa veia com menos de um milímetro
de largura com uma linha mais fina que um
fio de cabelo", explica. "Mas a melhor parte é
quando uso as ferramentas que eu mesmo fiz
em uma operação. Fico pensando que eu usei
a mesma pedra de afiação que meu avô usava", diz o cirurgião.
"A mão é tudo na vida de um sujeito, é o
grande órgão executor", afirma Costa, sobre
a importância das operações de reimplante
que faz. "São as mais cansativas e trabalhosas, mas também são as mais recompensadoras." Não é para menos que, na etimologia, a
mão significa princípio, ação, doação e labor.
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