São Paulo, quinta-feira, 19 de setembro de 2002
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outras idéias

xico sá

-O que você faz?

Já houve um tempo em que muita gente dizia -era hype- "mexo com vídeo". Hoje também pega bem lidar com algum ofício do mundo web designer

Essa é a pergunta que não quer calar em mesas, supostamente recreativas, da noite de São Paulo -aqui me resumo à província de Piratininga, que habito como verdade universal. Ecoa também durante o dia, mas, à noite, tem um sentido ainda mais doloroso.
Mesmo nos momentos mais relaxados, sempre existe um sujeito para o maciço ataque com a infeliz interrogação. Pode parecer inocente, mas é ridícula.
-Cuido da casa, e daí?! -responde sempre uma desaforada amiga, aqui chamada de A.W., que rala feito uma condenada em modernas casas tipográficas.
-Dou banho nos meus dois filhos, dizia outra, com quem vivi tempos.
-Paquero o abismo, diz Giovanna, outra amiga.
"O que você faz?" normalmente vem antes de qualquer introdução, qualquer prefácio, qualquer espuma flutuante do primeiro chope ou qualquer olhar mais afunilado.
Como diria o velho Lênin, "que fazer" diante do "o que você faz?".
Já houve um tempo em que muita gente dizia -era hype- "mexo com vídeo". Hoje também pega bem lidar com algum ofício do mundo web designer e por aí vai.
Diante de inoportuna e apressada interrogação, vejo muita gente no sacrifício a narrar os seus projetos ainda no limbo, a inventar ofícios, filmes de mesa de bar, livros em primeiro rascunho, recrutamentos platônicos, roteiros, roteiros, roteiros...
Sou do tempo em que, antes de qualquer "o que você faz?", procurava-se decifrar se estávamos diante de olhos verdes ou castanho-claros; castanho-claros ou cor de mel; cor de mel ou "gatinhados"; pretos ou de alma cigana.
O panfleto que vos entrego não tem nada a ver com o "politicamente correto", embora o desemprego corte cabeças a todo instante e já seja o suficiente para justificar a condenação à tal da infeliz pergunta sobre o labor.
Como dizia minha sertaneja mãe, é pura falta de educação mesmo, meu filho. "O que faz o quê, cara pálida?" Que direito alguém tem a tal indagação?
Ora, enxugo gelo, enfio o vento em um cordão, fabrico fumaça...
Deixo aí algumas pérolas do folclore do "ócio brasileiro".
Por esses e outros "o que você faz?" é que o meu irmão José Ronaldo ficava espantado quando, na qualidade de garçom em São Paulo, pedia demissão, ainda nos bons tempos desta cidade, para ir a uma grande festa no Nordeste.
Ninguém acreditava. Tem apenas o ginásio incompleto até hoje, mas guarda ingenuamente o princípio nietzschiano na veia, ao acreditar tão-somente nas cerimônias festivas, nos deuses que dançam.


XICO SÁ, 39, jornalista, faz reportagens para a Folha e tenta imitar a bela vida nas horas vagas; e-mail: xicosa@folhasp.com.br


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