São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 2002
Texto Anterior | Índice

outras idéias

paula dip

Um dia, a pessoa acorda, e sua vida parece perder o sentido. A habilidade de valorizar suas "obras" -filhos, bens materiais, posições de poder- parece ter sido roubada

No meio da vida

Os mitos gregos me fascinam desde a infância, quando li "O Minotauro", de Monteiro Lobato, e elegi meus primeiros heróis: os deuses pagãos do Olimpo, com seus arroubos, vícios e virtudes. Recentemente, outro livro fez a minha cabeça: "In Midlife, a Jungian Perspective" (No Meio da Vida, uma Perspectiva Jungiana), de Murray Stein, presidente do Centro de Estudos Jungianos de Chicago. Lançado em 1986 -e ainda sem tradução no Brasil-, o livro trata da meia-idade, aquela fase da vida que muita gente teme e chama, dramaticamente, de "crise".
Para Stein, a crise da meia-idade traz à tona a nossa loucura escondida, é uma espécie de "estado de sítio" emocional. E, se ainda não nos identificamos com ela, com certeza vemos professores maduros flertando com jovens alunas, que, de repente, abandonam tudo por uma nova paixão. Banqueiros, médicos, matronas respeitáveis -todos, na "idade do lobo", parecem dispostos a mergulhar de cabeça na imponderável dança da vida.
A crise da meia-idade, segundo Jung, é uma crise do espírito, compreensível justamente através dos mitos (ou arquétipos) gregos, meus velhos heróis. Na noite escura da maturidade, explica um dos criadores da psicanálise, tudo parece carecer de sentido, antigas questões existenciais ressurgem e nos atingem como raios. No meio dessa tempestade, diz Stein em seu livro, surge o deus grego Hermes (que os romanos chamam de Mercúrio, o deus que tem asinhas nos pés) para realizar sua missão. Segundo a mitologia, quando Hermes nasceu, Apolo, o deus da beleza, era o filho mais poderoso de Zeus. Maduro, reinava como primogênito, possuía riquezas, amores, tudo. Ao perceber a enorme diferença que havia entre ele (bastardo e renegado) e o irmão mais velho, Hermes, diz a lenda, roubou o gado de Apolo da noite para o dia. Apolo acorda bravo e surpreso, percebe que foi roubado e quer tudo de volta, mas Hermes finge inocência. Apolo vai reclamar a Zeus, que exige de Hermes uma reparação. Como é impossível recuperar o gado, Hermes, a caminho da casa do irmão, encontra um casco vazio de tartaruga e, com algumas tripas secas de carneiro, faz a primeira lira e a entrega a Apolo em troca do que roubara. A partir de então, Apolo passa a ser o deus da música, criador de todos os sons.
Segundo Jung, o mito de Hermes trata do renascimento da alma. Quando chega ao meio da vida, uma pessoa, em geral, está acomodada (como Apolo) em torno de padrões psicológicos conhecidos. Tudo parece perfeito. Filhos, trabalho, realização financeira. Um dia, a pessoa acorda, e sua vida parece perder o sentido. A habilidade de valorizar suas "obras": filhos, bens materiais, posições de poder (o gado de Apolo) parece ter sido roubada. Onde foi parar tudo aquilo que a fazia feliz? Esse é o primeiro ato do drama que se desenvolve no meio da vida: "Não é possível que eu tenha perdido o que conquistei. Quero minha vida de volta!".
O segundo ato da trama começa na caverna de Hermes, onde o pequeno e engenhoso ladrão dorme inocente. Quando seguimos as pegadas do ladrão de nossa libido, aprofundando nossa jornada até a escuridão do inconsciente, descobrimos que fomos saqueados por um bebê ardiloso que fisgou nossos tesouros e jogou nossa vida no vazio. Hermes finge inocência. Ladrão, mas também inventor, ele é uma força com a qual temos de lidar. Hermes parece uma maldição, mas também é o deus mensageiro, que traz o novo, a criação (a lira, a música). Na meia-idade, a alma, apoiada por essa força recém-nascida, inventiva, exige atenção. No meio da vida, Hermes (como a alma) não pode ser "contido". A alma escapa de seu refúgio e rouba, para ser vista, honrada e amada.
O mito nos conta que o conflito entre Apolo e Hermes acaba bem. Apolo aceita o presente de Hermes, e a música se torna o seu maior dom. Quando a alma desperta no meio da vida e nos traz seus presentes, somos desafiados por eles. Se aceitos, esses presentes serão o ponto alto de nossa existência, o centro de nossa unicidade. Se ignorados, podem nos perseguir por toda a vida e minar nossos esforços. Hermes, o deus mensageiro, é, na alquimia, o mestre das transformações, aquele a quem pedimos ajuda para avançar nesta odisséia que começa exatamente quando a jornada do meio da vida se abre diante de nós. Neste período decisivo da vida, não temos outra saída a não ser deixar que esse deus (segundo Chico Buarque de Hollanda) "sonso e ladrão" nos guie e nos presenteie com um novo dom.


Paula Dip é jornalista e artista plástica; e-mail pauladip@uol.com.br


Texto Anterior: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.