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LER POR PRAZER
"Todo leitor é um leitor de si mesmo" Marcel Proust
Encontrar uma identificação com a obra, reconhecer-se e compreender melhor o mundo são proveitos da boa leitura
LINA ALBUQUERQUE - FREE-LANCE PARA A FOLHA
Enquanto a fórmula dos manuais de auto-ajuda -espécie de pílulas de
Prozac em forma de livro- brilha na lista dos mais vendidos, as grandes obras da literatura prosseguem alimentando a incurável e fundamental
questão -"quem sou eu?"- que começou a perseguir o homem antes de
Gutenberg ter inventado a máquina impressora.
No fundo, as pessoas lêem por prazer ao conhecimento. Trata-se de um impulso humano natural, o de conhecer, e
existe até um nome técnico para isso:
"epistemofilia". Mas elas também lêem
porque querem se encontrar, reconhecer-se e compreender-se por meio das palavras escritas. Depois de Gutenberg,
ficou mais fácil para o simples mortal sonhar um pouco mais alto. E dividir a sua
existência com Ulisses, Hamlet, Fausto.
No recreio com Capitu "Os grandes
livros são portas para vivências que o homem comum não teve", diz o escritor e
jornalista Luiz Carlos Lisboa no recentemente reeditado "Tudo o que Você Precisa Ler sem Ser um Rato de Biblioteca"
(Editora Papagaio), um guia de literatura
saído das fichas de leitura que o autor faz
desde os 14 anos de idade (ele tem 72),
quando escalou a estante mais alta da biblioteca do pai a procura de livros de sexo
e acabou descobrindo Machado de Assis.
A companhia de "Dom Casmurro", de
Machado, além de render uma suspensão justificada pelo estatuto do Colégio
Santo Inácio, que não permitia a leitura
durante o recreio, levou o autor a se
transformar num rato -ou num "verme", conforme o termo inglês similar-
de biblioteca.
Pura sorte Lisboa ter sido "desvirginado" pela maliciosa Capitu na adolescência e despertado cedo para a complexidade da alma humana. Inexperiente, o então adolescente contava apenas com a
curiosidade a seu favor. "O leitor precisa
chegar aos livros essenciais levado pela
curiosidade que o faz sempre buscar a
resposta para o mistério de estar vivo",
escreveu no prefácio do seu guia, tratando de ocultar a sua vivência pessoal.
Hoje, o seu critério de seleção baseia-se
no repertório adquirido e também filtrado ao longo da vida. "São essenciais
aqueles livros que exerceram grande influência e, ao mesmo tempo, sofreram
influência de grandes autores", completa
a definição.
Leitor de si mesmo É de modo para-doxal que a leitura acaba atuando como
um fator de qualidade de vida. Quem
apanha um livro em busca de uma resposta, em geral, pouco ou nada encontra.
Quem lê por prazer, movido por interesse e curiosidade pelo mundo, recebe de
volta o poderoso estímulo da "identificação" que provém da arte, e aí, sim, a realidade pode ser, se não transformada,
compreendida com maior profundidade.
"Na verdade, todo leitor é, quando está
lendo, um leitor de si mesmo", afirmou
Marcel Proust, autor da importante obra
"Em Busca do Tempo Perdido". A frase
foi extraída pelo escritor britânico de origem suíça Alain de Botton e faz parte do
livro "Como Proust Pode Mudar a Sua
Vida" (Editora Rocco), uma mistura de
biografia e crítica literária que se faz de
auto-ajuda apenas no título.
Para Alain de Botton, Proust ajuda
muito quando observa: "Não se pode ler
um romance sem atribuir à heroína os
traços da mulher amada". Ou então: "Se
lermos a obra-prima de um homem de
gênio, sentiremos prazer ao descobrir
nas suas reflexões alegrias e tristezas que
também são as nossas, mas que estavam
reprimidas: um mundo inteiro de emoções que desprezávamos e cujo valor se
torna subitamente evidente ao fato de as
lermos em um livro".
Os efeitos benéficos ou deletérios da leitura, segundo os críticos, têm menos a
ver com a trama da história do que com a
capacidade das palavras de invocar a curiosidade e a imaginação em torno da vida.
Os filmes e os livros Todos os instrumentos que a humanidade até hoje inventou são uma extensão da mão, ao passo que o livro é um prolongamento da
imaginação, diz, citando Jorge Luis Borges, Luís Augusto Fischer, colunista da
Folha e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
"A diferença entre um filme e um livro
é que há vários sonhos no meio do acompanhamento da história escrita", diz Fischer. Os sonhos estão no meio da leitura
porque ler é sujeitar-se a um tempo diferente. Talvez seja justamente esse um dos
maiores benefícios que o livro traz. Primeiro, porque quem lê como que "ganha" o tempo para si. Controla assim o
tempo, fazendo dele o que bem desejar.
"Num mundo que abomina o silêncio e a
solidão, a leitura é um dos poucos exercícios que valoriza o espaço individual",
ressalta Cristovão Tezza, autor de "Breve
Espaço entre Cor e Sombra" (Editora
Rocco) e professor do departamento de
linguística da Universidade Federal do
Paraná.
Depois -e não menos importante- a
leitura faz com que presente, passado e
futuro se fundam e fluam justapostos à imaginação. Um mesmo livro lido em momentos diferentes tem as suas interpretações revistas e atualizadas pelo desenrolar da vida.
Ao longo de uma leitura, é possível reter um amontoado de palavras capazes
de despertar para experiências antigas,
reconstituir algum sentido -ou falta de
sentido- no labirinto da memória. Um
livro revira o baú das lembranças e, de repente, estacionando os olhos numa ou
noutra página, o leitor reconcilia-se com
alguma experiência antiga. Compreende
assim um pouco mais do seu passado.
Ou, numa outra inversão do tempo linear, encontra algum tipo de "preparação" para os acontecimentos futuros
-Nietzsche dizia que a arte antecipa a
vida sob muitos aspectos.
"Concertos interiores" Os adeptos
da leitura dinâmica podem não gostar,
mas o prazer de ler pouco ou nada se beneficia da rapidez. Isso vale, claro, para a
leitura de um livro -não de jornal, outdoor ou legenda de filme.
Também não se aplica àqueles que,
mesmo com o hábito de devorar diversas
obras ao mesmo tempo, sempre farão
sua parada mais demorada em uma ou
outra página aberta sobre o topo da pilha
de livros que vai aumentando ao lado da
cama. Ler muito não é o mesmo que ler
muito depressa.
A qualidade vagarosa da leitura dá ouvidos aos "concertos interiores", comparou Gaston Bachelard em "A Poética do
Devaneio" (Martins Fontes). O filósofo
insiste em um -único- conselho: não
ler rápido demais e cuidar para não engolir trechos demasiadamente longos.
"Sim, mastiguem bem e bebam em pequenos goles", orienta.
Mas que grandes livros são esses que, lidos sem nenhuma pressa e, quem sabe,
até com uma caneta na mão, podem
acender o estopim que falta para as coisas
serem mais profundamente compreendidas na vida ou na imaginação de uma
pessoa? São aqueles capazes de sobreviver à prova crucial do tempo. "Cruel para
a maioria das obras, o tempo traz à obra-prima a suprema consagração", afirma o
filósofo Michel Guérin no ensaio "O que
É uma Obra?" (ed. Paz e Terra). Assim é a
natureza de um clássico. Mas, afinal, por
que lê-los?
Os clássicos e o presente O escritor ítalo-cubano Italo Calvino transformou essa questão em nome de livro -
"Por Que Ler os Clássicos" (Companhia
das Letras)- e deixou bem claro que os
clássicos servem para entender quem somos e onde chegamos. São demarcadores de lugar - "Quem leu antes os outros
e depois lê aquele, reconhece logo o seu
lugar na genealogia"-, mas merecem
ser alternados com a leitura do presente.
"É clássico tudo aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulho
de fundo, mas ao mesmo tempo não pode prescindir desse barulho de fundo",
diz Calvino.
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