São Paulo, quinta-feira, 20 de dezembro de 2001
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s.o.s família

O ideal de pai perfeito gera montanha de culpa

Rosely Sayão

Pais perfeitos? Isso não existe. Mas, apesar de essa idéia ser bem-aceita e muito bem compreendida pelos pais, eles travam, quase diariamente, uma dura batalha contra ela. E o pior: arcam com uma consequência nada agradável e muito perturbadora da imagem idealizada de pais que criaram para si. É, a culpa atrapalha. Mas que culpa é essa, afinal?
Bem, um belo dia um casal resolve ou aceita colocar um filho neste mundo. Um mundo um tanto quanto insano, violento, inseguro. Isso significa assumir a árdua tarefa de preparar o filho para enfrentar o que der e vier. Quer dizer, enfrentar é pouco: o que os pais almejam é, na verdade, preparar o filho para que ele se dê bem na vida, para que seja feliz. Esse anseio só aumenta a responsabilidade dos pais e a exigência que fazem sobre o papel a cumprir.
E o filho nasce, começa a crescer, e, com isso, surgem os contratempos para atrapalhar a imagem criada. Os pais, que sonhavam e desejavam ser democráticos, justos, pacientes, tolerantes, enfrentam um filho rebelde, teimoso, curioso, insistente. E, no lugar da idéia de que uma boa conversa com o filho tudo pode resolver, surge a realidade muito diferente. Os pais precisam ensinar regras, impor limites, assumir a autoridade, proteger a criança, fazer-se respeitar. E como uma criança de três anos, por exemplo, pode entender e aceitar tudo isso com uma simples conversa? Como um adolescente impetuoso e cheio de vitalidade e vontade de descobrir o mundo pode ouvir as razões dos pais sem brigar pelo que pensa e pelo que quer? Com essa parte o sonho não contava, e a atitude educativa dos pais que se impõe nessas horas provoca culpas. Ou, então, os pais passam a ser tolerantes além da conta, o que também provoca culpas.
Quem tem filhos quer dar a eles o melhor, dentro do possível: boa escola, conforto, segurança, saúde e um bom lazer. Para dar conta de tudo isso, os pais trabalham. E trabalham. Consequência: ficam estressados, passam pouco tempo com os filhos, perdem facilmente a paciência quando estão com eles. Tem mais: depois de um longo dia longe do filho, os pais acreditam que devam desfrutar da companhia dele no tempo que resta, que precisem expressar o afeto que sentem por ele. Mas como fazer isso e, ao mesmo tempo, orientar, conter, cobrar? Atitudes como essas geram culpas. Os pais, então, optam por não dizer "não", o que também provoca culpas. Tudo isso torna ainda mais distante a imagem idealizada de pais que já foi tão sonhada. E isso gera mais culpas.
É possível escapar de tanta culpa? Talvez não, pois assumir o papel de pai ou de mãe significa educar, passar valores, restringir impulsos, sustar comportamentos. Mas talvez seja possível assumir esse papel com um pouco mais de liberdade de ação. Para tanto é preciso aceitar a idéia de perder aquela imagem tão idealizada de como ser pai que foi criada, mas que fica longe da realidade.
Os pais podem sonhar ser -e ser de fato- compreensivos, tolerantes, justos, pacientes. Mas na medida da realidade, do possível, e sem perder de vista o papel educativo que têm a cumprir. Claro que essa função provoca ao filho desconforto, sofrimento, frustração. Quem aceita uma restrição de bom grado, sem lamentar? Quem gosta de ter um pedido negado? Mas isso tudo faz parte do jogo, tanto quanto amar os filhos e por eles ser amado.
A culpa paralisa, impede, congela a ação. Por isso não é produtiva, por isso deve ser evitada pelos pais. Pelo menos seus efeitos. Já a responsabilidade facilita a busca de soluções, implica os pais em seu dever. E isso é tudo de que os filhos precisam. Muito melhor assumir essa responsabilidade no mundo real do que uma culpa que se alimenta apenas no mundo de imagens idealizadas, portanto impossíveis.
Pais perfeitos? Isso não existe. Pais que tentam acertar, mas que erram, pais que se afligem, pais cheios de dúvidas, pais que se inventam a cada dia, pais que se perdem, mas não desistem, pais que não têm certas respostas. Esses são os pais que assumem seu papel tão humano. Com toda a humanidade possível.


ROSELY SAYÃO é psicóloga, consultora em educação e autora de "Sexo É Sexo" (ed. Companhia das Letras);

e-mail: roselys@uol.com.br



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