São Paulo, terça-feira, 21 de setembro de 2010
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ROSELY SAYÃO

Eu desconfio tu desconfias


Que vida é esta, se estamos sempre prontos a pensar que o outro está aí para nos prejudicar?

A ÉPOCA em que vivemos tem uma característica que afeta profundamente as relações interpessoais e, portanto, a vida em sociedade: a desconfiança que criamos em relação ao outro.
Um trecho da letra de uma música expressou um sentimento que surgiu na década de 1960: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos".
Hoje, ficamos apenas com a primeira parte da frase: "Não confie em ninguém".
Isso já começa com as crianças. Uma garota chegou da escola e contou à mãe que não estava se sentindo muito bem. Naquele dia, tivera aula de educação física que foi realizada sob o sol. A mãe preocupou-se, pelo fato de a umidade do ar estar muito baixa. Então escreveu ao professor, manifestando sua preocupação.
Pois esse fato tão simples transformou-se em uma grande encrenca, porque o professor acusou a aluna de ter, ela própria, escrito a carta com o intuito de livrar-se das aulas de educação física.
A mãe teve de ir à escola para autenticar sua carta.
Como fica a relação dessa aluna com a escola, sabendo que seus atos são encarados com tamanha desconfiança?
Nas escolas, ocorrem pequenos furtos diariamente. E esse fenômeno não é típico das escolas públicas, caro leitor. Nas escolas privadas, em que os alunos são de classe média alta, o fato ocorre regularmente.
Algumas instituições adotaram uma prática quando desaparece algum objeto de alunos em sala de aula: revistar as mochilas e malas deles.
Nem vou tratar aqui da ação policialesca da escola, em vez de educativa. De novo, é a desconfiança que impera nas relações da escola com seus alunos.
E o que falar do que ocorre no mundo corporativo? Em muitos hospitais, empresas de todo tipo e porte, casas comerciais etc., agora virou rotina a prática de revistar, na hora da saída, bolsas e pastas de funcionários.
E o que é ainda pior: todos se sujeitam a essa absurda invasão de privacidade, provocada pela desconfiança de todos.
Nesse caso, por se tratar de adultos, o fato é grave. A empresa não tem ideia dos sentimentos que isso gera e, mais cedo ou mais tarde, arcará com consequências de sua decisão.
Os funcionários, por sua vez, ao se colocarem nessa situação humilhante, são tomados por emoções nem sempre reconhecidas, que podem provocar reações dos mais diversos tipos no exercício profissional.
Uma enfermeira que trabalha em um hospital em São Paulo tido como de primeira linha disse que, todos os dias, quando passa por essa situação, fica revoltada. A empresa não revista os médicos.
"Então, há profissionais que estão acima de qualquer suspeita?" pergunta ela. O segundo motivo da sua revolta é que ela considera sua bolsa seu espaço mais íntimo, quando não está em casa. Isso significa ter de escancarar sua intimidade para estranhos. Há alguma coisa pior do que isso?
Precisamos dos outros. Sem eles não há vida social possível. Convivemos com os outros, como colegas e estranhos, boa parte de nossa vida: no trabalho, nos espaços públicos das cidades, no trânsito, nos transportes coletivos etc. E que tipo de vida é essa, se estamos sempre prontos a pensar que o outro aí está para nos prejudicar?
Nós temos pouco a fazer para mudar este mundo. Os mais novos farão isso. Mas bem que eles poderiam contar com nossa pequena colaboração: a de mostrar a eles que o outro faz parte de nossa vida e que temos com ele uma relação de interdependência.
Por isso, melhor ter apreço e respeito do que desconfiança e hostilidade. Só assim o clima social pode melhorar.


ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)


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