São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004
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s.o.s. família

rosely sayão

Para participar, não basta estar presente

Esta semana vi a propaganda de um modelo de telefone celular, estampada em duas páginas numa revista, que nos dá uma excelente pista a respeito de como temos pensado as relações entre pais e filhos em nossa sociedade. A propaganda sugere que um pai, ao assistir à encenação de um teatro infantil provavelmente com seu filho atuando -quem mais senão os pais assistem a essas apresentações?-, use o seu celular para acompanhar o desenrolar de um jogo de futebol. "Mude o canal" é o texto que pretende convocar o leitor a se identificar com uma cena em que o protagonista consegue escapar de uma situação sem grande interesse para outra que lhe diz muito mais respeito.
"Vamos fazer de conta que os pais se relacionam com os filhos com verdadeiro interesse. Vamos fingir que o que os filhos fazem e falam desperta nos pais a vontade destes de participarem ativamente das conquistas e desafios rotineiros que eles vivenciam. Vamos ocultar o fato de que o tédio toma conta dos pais nas atividades festivas que as escolas promovem com seus alunos com a participação da família. Vamos simular a presença dos pais na vida dos filhos etc". Esses parecem ser alguns princípios embutidos na propaganda em questão e no modo de pensarmos o relacionamento com os filhos.


As crianças têm antenas de alta precisão voltadas aos pais o tempo todo. São as primeiras a perceberem a dissimulação, o enfado, o tédio e o fingimento, quando eles existem mesmo disfarçados


Talvez seja importante considerar, aqui, que os pais estão sob pressão social intensa. Como a vida em família e a relação entre pais e filhos têm sido consideradas elementos-chave na formação de pessoas de bem, os pais têm considerado necessário, no mínimo, estar de corpo presente na vida do filho, principalmente quando essa presença é ou pode ser observada por outros. No caso de crianças, esse outro costuma estar na escola. Quando os pais não marcam presença, sabem que serão julgados. "Pais ausentes" é uma expressão bastante usada por educadores do espaço escolar para qualificar pais que não comparecem a seus chamados.
Tomando uma parte pelo todo, os trabalhadores da educação nem se dão conta de que pais ausentes dos chamados que a escola faz podem ser verdadeiramente presentes na vida do filho, e de que pais presentes no espaço escolar que o filho freqüenta podem ser totalmente ausentes no relacionamento diário entre eles -que é o que constrói, na verdade, o vínculo de pertencimento. Afinal, o que acontece entre pais e filhos na privacidade do lar só eles mesmo sabem, não é verdade?
E é debaixo de tanta pressão que os pais se sentem obrigados a fazer coisas com os filhos que nem sempre curtem, gostam ou acham necessário ou importante fazer. É na busca de serem identificados bons pais, presentes na vida dos filhos e que honram o compromisso assumido, que acreditam ser necessário exprimir, sem sinceridade alguma, emoções suscitadas pela observação do crescimento do filho.
Mas, é bom avisar em alto e bom som: as crianças têm antenas de alta precisão voltadas aos pais o tempo todo. São as primeiras a perceberem a dissimulação, o enfado, o tédio e o fingimento, quando eles existem mesmo disfarçados. É essa a parte que, para elas, fica. Do mesmo modo, são elas as primeiras a perceberem o esforço real que os pais fazem para acompanhá-las, o interesse verdadeiro que surge no relacionamento entre eles, na prioridade que dão, em certos momentos, para os filhos. Essa é a parte que fica e que pode render bons frutos.
Em oposição à propaganda que estamos comentando, lembro-me de um episódio de um filme já antigo: "Bagdá Café". Um jovem pratica piano insistentemente enquanto a mãe -e a maioria dos presentes no local- lamenta o estorvo do som produzido. Cada vez com mais fúria, ele pratica. Até que um dia uma hóspede do pequeno e maltratado hotel se põe a ouvir, com real interesse, o que ele toca. O rapaz se transforma e passa a executar, com extrema delicadeza e sensibilidade, uma música clássica. Ele percebe que há um ouvinte para sua música, enfim.
Essa é a pergunta que devemos fazer ao interagir com crianças e jovens: estamos, de fato, nos relacionando com eles? Ou será que estamos lá só fazendo um número, apenas de corpo presente? Nesse caso, o modelo de celular anunciado do modo que foi até que pode ser bem útil.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha); e-mail: roselys@uol.com.br


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